sexta-feira, 14 de dezembro de 2012
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012
família educa
escola educa
o dono da padaria, meu bem,
educa
e educa também o porteiro
o cão que ladra
o carteiro
a carta que chega
o e-mail
a árvore enfeitada no meio
da sala quadrada, o cheiro
de terra molhada
educa
o sol que amanhece
a chuva
a fome do homem
a nuca
do bicho escondido
arapuca
do velho mateiro
o Juca
o bom pipoqueiro
que desde o começo
labuta
e educa o moleque
que estuda
com o milho que explode
ensina
lição
big bem
domingo, 9 de dezembro de 2012
quarante troisième em homenagem a Gilbert Durand, hoje água
O sol na teia de aranha ilumina um canto do quarto com brilho de caçador. É manhã. Tremendo presa a ela não sei se está aranha, mosca, folha ou estrela perdida da noite anterior.
Voa um vento quarto adentro, erguendo as folhas da mesa e varrendo os pensamentos. Post-its colados no mundo amarelecem parede de um mapa de azul profundo.
No fundo de algum oceano há de haver, mesmo no instante agora, uma grande teia marinha impedindo que as águas fundas acabem por ir embora.
A vocação das águas é trocar de casa.
quem gosta de escrever poesia, preste meia atenção nisso: os versos, dispostos um abaixo do outro - normalmente - dão uma cadência rítmica à leitura. Teus versos podem ser quebrados, podem não ter rima, podem não ter métrica, podem não ter nada, mas eles sempre vão ter ritmo, porque estão apresentados em unidades visuais que, grosso modo, possuem sonoridade própria. Esses versos precisam ter um ritmo agradável, e não só o ritmo casual que uma versificação arbitrária deixou de herança - por outro lado, nem sempre métricas feitas a régua conseguem ritmos bons.
O balanço da coisa é esse aí: ouça o que as palavras dizem - não o que elas querem dizer, não o que elas significam: o que elas .
sábado, 8 de dezembro de 2012
conto contos de fábulas III
[contos de fábulas III
Sentado na muralha do castelo, com as pernas balançando sobre o vazio daquela encosta, o jovem imperador procurava a origem dos piados que ouvia.
De pequenos buracos ao longo do muro, rachaduras, frestas antigas, ao lado do limo crescente cresciam também outras flores, plantas, trepadeiras-roxas de primavera. Com elas, pequenos pássaros adornavam suas casas, piando ao som do calor das montanhas.
Não que aquela parte do império desconhecesse a guerra. Pelo contrário, poucos meses antes inimigos investiram contra os muros, e onde escorriam cantos antes correra sangue. Mas as plantas não são breves como a vida.
Do alto da muralha o imperador procurava a voz dos cantores ocultos, nos pequenos rincões que adornavam a mais dura e fria fortaleza.]
pré-efemérides
Daqui a dez anos teremos um século de Modernismo, e nem nos tornamos Modernos - no sentido desenvolvimentista do termo - nem nos modernizamos - no sentido estético e programático que, desde o comecinho, pressupunha dedicação e leveza.
Daqui a cinco anos teremos meio século de Tropicália, e nem nos tornamos Tropicais - porque ainda desejamos e ambicionamos nordicidades que não nos pertencem - nem nos tropicalizamos - no sentido de que continuamos enchendo cidades, asfaltando o mundo e deixando os trópicos escondidos sob concreto e sisudez acadêmica.
Da Tropicália, também, não mantivemos a dedicação de pensar, sinceramente, a estética. Falta, hoje como há cinquenta anos, dedicação formal constante. E leveza.
Aproveito-me de efemérides antecipadamente: dez e cinco anos. O que faremos, nesse tempo? A que dedicações estéticas, estilísticas, a que fruição de vida, a que renovação das coisas pretendemos estar atentos? Dedicados?
E leves.
Se algo se fortaleceu nesses últimos decênios, talvez tenha sido a despreocupação com a forma, com a estética. O mesmo movimento que enaltece padrões de beleza e consumo rebaixa a dedicação com pensares de estilo, de questões formais.
Fala-se muito, quer-se dizer muito, diz-se mal. Em algum momento perdemos a noção de que mostramos o que mostramos, e não a nossa intenção. O conteúdo ganha seriedade, peso. A estética perde atenção. E leveza.
Dentro de cinco e dez anos serei chamado a analisar meu próprio trabalho, e rever o que fiz - terei feito - para contribuir de alguma forma com aquilo que me parece, de um jeito ou de outro, essencial. Em cinco e dez anos, passados os momentos que historicizam os conteúdos do que é arte, do que é produção, a única coisa ainda viva será o estilo com que isso - seja lá qual isso - foi feito.
Talvez seja um problema de aceleração de meios, de circulação. Talvez queiramos transmitir incessantemente uma quantidade enorme de informações, novas coisas, novas ideias, e não lembremos de que informações, novas coisas e ideias precisam de atenção, de boa forma, de estilo e auto-suficiência.
E leveza.
umbandharma
saravá buda amitabha
maitreya lhe chamou
fez-se a cruz, a oferenda
sete linhas já cruzou
aos espíritos famintos
nas esquinas das cidades
toca o sino, o surdo e o pito
a cachaça e a verdade
ressoam pelos seis reinos
a voz de todos os guias
das dez direções, do centro
a gira de todo dia
sábado, 1 de dezembro de 2012
terça-feira, 20 de novembro de 2012
marioquintana falou que o ouvir,
a pergunta,
o tom de interrogação,
estavam contidos no desenho do ponto
?
o formato de ouvido curvo, ainda com brinco na extremidade
em chinês, ouve-se também
mas sem brinco.
ouve-se a boca a falar
e a orelha alongada é virada
pro lado de lá
听
ouvimos o que vem do oeste
a china, o que vem de leste
talvez seja mesmo um diálogo de surdos
mas, ah!, como esses surdos desenham bem
a simplicidade do escutar...
domingo, 18 de novembro de 2012
quinta-feira, 15 de novembro de 2012
segunda-feira, 12 de novembro de 2012
domingo, 11 de novembro de 2012
Na hora do fim do mundo, o mundo não terá um final feliz. Não terá um final triste, tampouco. Na hora em que tudo acabar, o cosmos, findando o universo inteiro, não haverá qualquer espécie de seres conscientes para assistir. Para atribuir valor ao final de tudo.
O fim do universo será silencioso porque nenhum ouvido ouvirá. Não ouvindo, não falará.
Sua espécie humana, também, estará extinta a muito quando a Terra se esgotar. Quando ela terminar, oficialmente. Nenhuma narrativa humana interpretará o final do planeta.
Nós, que duraremos ainda eras após sua morte, seu Sol, estaremos atentos ao fim de todas as suas coisas. Depois do fim das espécies assistiremos ao fim do planeta que vocês, agora, chamam de lar.
Não será um final triste nem feliz, entretanto. Nós atribuímos sentido às coisas, mas nenhum desses nossos sentidos seria compreendido por vocês.
Aproveitem o tempo que resta. Nada de seu legado corresponderá ao que pensaremos na hora do fim do mundo.
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
domingo, 28 de outubro de 2012
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
nota budista sobre ativismo social
Por muito tempo tive a ideia formada de que política, sobretudo a política institucional, partidária, das eleições e demais mecanismos sistemáticos, não funcionava. Que não funciona. Não era uma ideia de que "as coisas estão em más condições". Não. Era a ideia de que "as coisas não vão melhorar, por esses meios, porque o sistema é ruim e as pessoas também".
O sistema é ruim, decididamente. Vivemos uma política burocratizada, uma estrutura que engessa sua própria mobilidade, mas costumamos - ou eu costumo - expandir essa deficiência também para as pessoas, para as pessoas individuais que compõem as coletividades sobre as quais paira o sistema. Sabemos, é claro, que o sistema não "paira sobre", mas está misturado com, permeia todas as ações cotidianas e formas de pensamento mais simples. Entretanto, as pessoas apresentam uma vantagem frente a sistemas estruturados: as pessoas podem mudar com mais facilidade, podem acordar diferentes, podem ser tocadas por algo e passar a agir de outro modo. As pessoas mudam com maior rapidez do que as condições.
Por esse muito tempo, então, minha atitude frente a manifestações de apoio a algo era, no mínimo, cética. "Ninguém vai ler meu e-mail", "não vai adiantar", "ninguém se importa". Mas, agindo assim, eu estava sendo inconsistente com minha própria visão de mundo, com minha compreensão sobre a mudança.
Não sei se alguém vai ler meu e-mail, não sei se vai adiantar, não sei se alguém - além de mim, porque sobre mim eu posso ter certeza, caso preste atenção suficiente - não sei se alguém se importa, mas também não sei se não. Não posso afirmar que não. Isso, nunca.
Há uma passagem no Tenzo Kyôkun, as Instruções para o Cozinheiro-Chefe Zen de Mestre Dogen (fundador da ordem japonesa Soto Zen, confira aqui: http://aguasdacompaixao.files.wordpress.com/2008/01/dogen-eiheishingi-tenzokyokun-instrucoesparaocozinheirochefe.pdf) que diz:
"Se nós não podemos saber como nos fixar no Caminho, como podemos avaliar outra pessoa? Se os critérios a partir dos quais nós julgamos os outros são incorretos, podemos pensar que seus bons aspectos são maus e vice versa. Que grande engano!"
Se não sabemos como seremos amanhã, como podemos nos apressar a julgar os outros? Se o fizermos, seremos contrários a nossas próprias possibilidades de mudança. Como posso afirmar o que alguém fará hoje, se eu próprio não sei como eu serei amanhã - ou daqui a minutos?
De acordo com o Buda histórico, Siddharta Gautama, só há um meio para o praticante conhecer as coisas, saber de seus efeitos e de sua validade: praticando. O Buda sempre reforçou, em seus ensinamentos, um ponto fundamental e muitas vezes esquecido. Esse ponto diz que ninguém deve aceitar verdades sem, antes, investigá-las. Nenhum mestre espiritual, nenhum professor gabaritado, nenhuma autoridade superior, ninguém tem a possibilidade de nos mostrar a verdade, exceto nossa própria experiência.
Então, como pode ser verdade que "não vai adiantar nada", se eu ainda não agi? Se eu ainda não ofereci a oportunidade para que algo acontecesse? Se não adiantar nada, tudo bem. Se adiantar algo, minha experiência foi válida.
Nenhum mestre, professor ou autoridade tem superioridade sobre nossa experiência, sobre nossa atenção e ação. Ninguém, nem mesmo nós e nossos preconceitos, medos e incertezas.
O Buda dizia "venha e veja", convidando a experimentar suas descobertas. No mesmo sentido, a prática e o exercício na vida social, na vida pública, deve ser um "vá e faça". Esteja de acordo com o desejo de ajudar os outros, de fazer o bem. Considere cuidadosamente suas atitudes e os possíveis efeitos de suas ações. Mas, se existe uma possibilidade qualquer, vá lá e faça. É possível que os resultados surpreendam.
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
nota sobre o Budismo no Brasil
Há alguns meses fui contactado por um WebJornal para responder a algumas questões sobre o budismo no Brasil. A matéria saiu e, como era de se esperar, do que eu respondi pouquíssimo foi aproveitado (confira o texto em questão aqui: http://www.mundodigital.unesp.br/webjornalnovo/23/09/2012/por-um-mundo-mais-zen/)
Portanto, aproveito para publicar aqui no míseramesa as respostas completas que não foram utilizadas.
Qualquer pessoa pode participar dos rituais budistas?
Portanto, aproveito para publicar aqui no míseramesa as respostas completas que não foram utilizadas.
Quando o
budismo chegou ao Brasil? Como foi essa chegada?
No início
do século XX, com a chegada dos imigrantes japoneses ao Brasil –
em 1908 -, o budismo nipônico desembarcou oficialmente no país.
Havia um missionário ordenado, no navio Kassato Maru, e com ele o
Budismo Primordial (Honmon Butsuryu-Shu) começou a se estabelecer.
Entretanto, por pelo menos 50 anos a presença desse budismo, e de
outras tradições japonesas, manteve-se restrito à comunidade
étnica de imigrantes e descendentes. Foi quase o mesmo caso com o
budismo chinês, que chegou ao Brasil quase um século antes da
imigração japonesa de 1908. Em 1810, centenas de chineses foram
levados ao Brasil com o intuito de desenvolver o cultivo de chá, e
não é difícil imaginar que carregavam consigo as tradições
religiosas da terra de origem. Seja como for, essa primeira migração
chinesa não vingou em terras brasileiras, nem seu budismo se
expandiu para além dos poucos remanescentes dessa onda. É seguro
falarmos numa maior expansão do budismo no Brasil a partir das
décadas de 1950 e 1960, especialmente, com as novas ondas
migratórias da Ásia, especialmente da China e Taiwan, e com a
consolidação de centros missionários japoneses como o Higashi
Honganji, em São Paulo. Nessa época, inclusive, o budismo tibetano
se expandia para o ocidente por conta da invasão chinesa ao Tibet,
que infelizmente se prolonga até hoje, e o exílio do Dalai Lama
trazia a diversos países ocidentais essa tradição budista
específica. No Brasil, aparentemente, o budismo tibetano se
fortalece a partir da década de 1980. Depois, em 1992, chega ao país
um representação de Fo Guang Shan, ordem taiwanesa do budismo
chinês, que hoje marca presença importante com o templo Zu Lai, em
Cotia – SP.
Recapitulando, portanto: o budismo étnico está
presente no Brasil desde as migrações orientais, no século XIX com
os chineses, século XX com os japoneses. Sua difusão entre a
população brasileira não-descendente, entretanto, acontece
lentamente a partir da metade do século passado, e se fortalece pelo
interesse acadêmico e intelectual dos estudiosos e leitores de obras
budistas, acompanhando uma tendência ocidental do período. Existem
diversas tradições, escolas budistas e correntes vindas de
diferentes países asiáticos, e essa sumarização não chega nem
perto da verdadeira realidade budista brasileira. São apenas alguns
pontos em um cenário disperso e de difícil mensuração, que merece
ser descoberto e conhecido por todos que se interessem pelo tema,
pelas práticas, pela religião. Retomando a pergunta inicial, vale
lembrar que não é tão simples falarmos de “um budismo”, já
que 2500 anos de tradição filosófica e dispersão geográfica
constituíram “budismos”, expressões religiosas embasadas nos
ensinamentos fundamentais do Buda – o Dharma -, mas que ainda assim
se mostram bastante diversificados em suas manifestações.
Existe alguma estatística de quantas pessoas seguem os ensinamentos budistas no Brasil e no mundo?
Existe alguma estatística de quantas pessoas seguem os ensinamentos budistas no Brasil e no mundo?
Existem
os dados do IBGE, que ainda neste ano de 2012 divulgou as informações
do censo mais recente com relação às denominações religiosas no
Brasil
(ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf
). Com relação aos anos anteriores, podemos encontrar na tese de
doutorado do professor da PUC-SP Rafael Shoji a recolha desses dados
(http://d-nb.info/972545468/34 ). De 1991 para 2000 tivemos a
diminuição do número absoluto de budistas, passando de 236.405
para 214.873. Já no censo recente, de 2010, temos a população
total budista estimada em 243.966. Um aumento em números absolutos,
portanto, que está ainda à espera de uma análise adequada.
Com
relação aos números no mundo, temos uma boa fonte no site
internacional BuddhaNet
(http://www.buddhanet.net/e-learning/history/bud_statwrld.htm e
http://www.buddhanet.net/e-learning/history/bstatt10.htm).
Qualquer pessoa pode participar dos rituais budistas?
Sim,
embora essa seja uma resposta bastante relativa. É sempre possível
participar das práticas budistas oferecidas por cada centro de
Dharma, por cada templo específico. Entretanto, nem todos os rituais
são completamente abertos ao público, porque alguns deles requerem
a realização de rituais anteriores. Mas práticas de meditação,
participação em ritos de recitação de sutras, entre outras
atividades, normalmente estão abertas a quaisquer interessados.
Basta que, para isso, a pessoa entre em contato com os responsáveis
por cada organização e, assim, encontre as melhores maneiras de
conhecer o Dharma e, com interesse, praticá-lo.
nota sobre Guarani Kaiowá e um passo pra terra madura
Este é um texto otimista sobre uma situação péssima. Desnecessário explicar toda a história: a internet tem bombado com informações e notícias da questão Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, sobretudo após a última semana. Para quem não sabe, um resumo:
Terras tradicionais das populações indígenas nativas, já reconhecidas como pertencentes às comunidades, ainda são ocupadas por latifúndios de produção agrícola. As comunidades, assim, acampam em torno das áreas em que estão seus ancestrais e, em certos casos, retomam e reocupam a terra que é deles, por direito. Nos últimos tempos, a Justiça Federal achou por bem retirar os indígenas das terras das fazendas, que na verdade é terra indígena, mas a Justiça parece não lembrar. Então, em assembléia comunitária, ficou dito algo como "não sairemos mais daqui, de nossa terra sagrada. Se a Justiça não vai nos proteger, se vai prosseguir com nossa expulsão, então que traga logo um trator para nos enterrar. Não temos Justiça para quem apelar: decretem logo nosso extermínio. Daqui nós não saímos."
Houve alguma divulgação desse fato, logo que a carta passou a circular, e uma lamentação estrutural. Sabíamos desde o começo que o trator ia chegar lá. Os índios iam morrer, porque nós temos a tendência de não ligar para esse tipo de situação. Os índios iam morrer defendendo a terra, seu modo de vida indígena, e nós estaríamos pouco ligando.
Mas a internet, esse animal que nos distancia e embrutece, resolveu dar uma oportunidade à causa. Por facebook, twitter, blogs, sites, e-mails, petições, youtubes, pouco a pouco a questão grave e urgente do MS passou a circular, a ganhar terreno. A criar uma nova terra que, muitos dizem, tem potencial para ser sagrada. Porque vimos primaveras árabes, democracias islandesas, diversas movimentações e flash mobs, mas nós mesmos estávamos de fora. Quer dizer, houve a novela semana passada, mas ela era efeméride: acabou e, suponho, não deixou marcas significativas.
Os índios, entretanto, os Guarani Kaiowá que uma parcela considerável dos perfis brasileiros de facebook mantém como sobrenome, essa novela não é efeméride, e eu temerosamente digo que está em vias de marcar significativamente nossa trajetória enquanto coletividade em rede.
Manifestações estão sendo chamadas, apagões virtuais programados, tudo com o intuito de chamar a atenção da mídia, dos poderes, dos órgãos responsáveis. Mas, mais que tudo, essas coisas têm sido convocadas por uma questão muito mais sutil e que, no afã da mobilização, talvez não estejamos percebendo.
Essa comoção, em grande parte sincera, está demonstrando que nós ainda temos uma noção de humanidade, de compaixão, um sentimento de coletividade - por mais estranho que pareça. Essa mobilização está demonstrando que existe, sim, amor em SP, no MS, existe amor em PE, RS, BA, PR, DF, GO, e todas as demais siglas que marcam os nosso estados.
Estamos recuperando, talvez, uma memória antiga e esquecida: a memória de que somos brasileiros, e que o Brasil é uma terra, e que essa terra não é só poeira e pedra. Essa terra, em diversas partes do nosso país, são pessoas. Porque índio é terra, como uma bela chamada fazia lembrar. Índio é terra, e se nós somos da terra do Brasil, nós podemos também ser índios, e devemos também ser índios.
Não podemos ser como a Islândia, mas podemos ser como Kaiowás, Guaranis, Jês e todos mais. Podemos ser negros quando formos negros, brancos quando formos brancos, orientais quando formos orientais. E, a despeito disso tudo - ou justamente por isso tudo -, podemos ser terra. Porque a terra não pertence a nós, nem ao latifúndio, nem aos índios. Nós pertencemos à terra.
Sejamos justos com ela.
sábado, 20 de outubro de 2012
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
terça-feira, 16 de outubro de 2012
contos de fábulas XII
O sétimo reino no ranking da riqueza passou a investir pesado, aquele ano. Os seis primeiros reinos se tornaram temerosos, desconfiados, infiltraram agentes e sabotadores. Não era para um sétimo se tornar em sexto, ou - deus os livrasse disso! - em primeiro. Nunca.
O ano transcorreu. Sétimo reino era difícil de entender. Os seis primeiros soberanos, os agentes, os infiltrados, os sabotadores, todos acompanharam a odisseia anual. Pelas prestações de contas mensais, pelo orçamento público, todos sabiam que o sétimo reino investia pesado. Durante um ano. Ninguém, entretanto, sabia onde, ou sabia como.
Pensou-se em guerra. Investimentos tão secretos só podiam ser cilada, só podia ser uma fria. Como na antiga investida silenciosa e armamentista. Os seis reinos começaram a se preparar, também em silêncio - mas nem tanto. Os reinos todos souberam em pouco tempo que os seis primeiros investiam em guerra, "Segurança nacional", como diziam. Os reinos todos ficaram temerosos. E o ano prosseguia.
Na classificação anual, depois de contadores e economistas, assistentes sociais e antropólogos, monges e executivos, depois de toda a equipe inter-reinal de avaliação passar pelos reinos todos, o ranking foi exposto.
Os seis primeiros reinos tinha descido vertiginosamente, entre as posições 23 e 42. O sétimo reino, curiosamente, continuava em sétimo.
Os seis primeiros postos agora eram dos reis que antes estavam entre 8º e 13º.
O oitavo colocado, entretanto, foi a maior surpresa daquele ano. A maior surpresa. O oitavo reino era o que antes, no ano passado, fôra o septagésimo primeiro. 71. O último colocado do ano anterior.
E então todos os reinos souberam onde o sétimo reino havia investido.
Este ano, dizem as bocas-pequenas que o novo 71º já mostra sinais de melhora...
domingo, 14 de outubro de 2012
dharma 45
Outono, o tempo muda. Chove mais, esfria, faz sol e calor de novo. Portugal não está como sempre foi, em questão de clima. As coisas mudam.
Chuva de outono, aqui, é chuva de verão no Brasil. Forte, pingos grossos caindo pesados, muita água e pouco tempo. Logo passa. Recolhendo a roupa lá fora, pensei exatamente nisso: "são chuvas de verão".
E continuei, recém-acordado, a pensar que
"trazer uma aflição dentro do peito
é dar vida a um defeito que se extingue
com a razão".
Também passa, aflição, peito, vida, até razão se extingue. Orlando Silva já cantava, Caetano também cantou, e caminharam contra o vento, sem lenço e sem documento
ao sol de quase dezembro
Sim. Também vou. E percebo, nesses momentos, que não só do Dharma vem o Dharma, não só do leste vem a sábia consciência de que a coisa toda passa.
"Ressentimentos passam como o vento
são coisas de momento
são chuvas
de verão".
Dar realidade a coisas não-reais é um engano, engano que cometemos todo dia. É legítimo estar triste, mas dizer "estou triste" coloca essa tristeza - que, afinal, não existe, ou se existe vai existir apenas por pouco tempo - em um nível diferente. Ela passa a existir como coisa autônoma, como "a tristeza", entidade. Palavras têm poder. Antes de dizer, antes de acreditar que a carregamos dentro do peito, a tristeza não existe, a aflição. Ela é um misto de muitas coisas que nós, pensando sobre, decidimos nomear de tristeza.
Mas, como a chuva de verão no outono português, a tristeza também passa. E se estivermos atentos a esse fluxo, se não criarmos ressentimentos contra a chuva, em muito pouco tempo podemos estender as roupas novamente. Ao sol de quase dezembro.
sábado, 13 de outubro de 2012
divulgação científica
pensando sobre divulgação científica. Isso falta, nas nossas academias, não falta? O ensino - ou melhor, o treinamento e a prática - de comunicação científica, de dizer aos não-acadêmicos o que nós, acadêmicos, fazemos. Divulgação científica não é ciência propriamente dita, suponho. Também não é pura oratória de entrevistado. O que é, então? Como fazer? E, especialmente, quem fazer? Um grande acadêmico não tem a obrigação de ser também um comunicador eficaz - e grande parte de nossos pesquisadores/professores universitários infelizmente demonstram essa ausência de eloquência. Se fazer boa pesquisa não significa, necessariamente, saber falar sobre a boa pesquisa, a divulgação científica deve ser tarefa de comunicadores/educadores/acadêmicos-bem-falantes. E ponderados. Extremismos retóricos, se não forem estrategicamente pensados, podem se tornar demonstração de arrogância. Demonstração de uma suposta superioridade intelectual. A ciência, tanto a humana quanto a exata, sobre homem/bicho/planta, deve praticar a fala. E, diferentemente do que estamos acostumados, não a fala aos nossos pares. A ciência precisa de ímpares.
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
terça-feira, 2 de outubro de 2012
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
coisas da vida
Ela gostava de mim, e eu nunca lembrava de seu nome.
Talvez ela não soubesse. Talvez tenha percebido no dia antes daquele, em que a cumprimentei com palavras vagas.
Foi encontrada morta.
Até hoje não sei se era Maria ou Antônia.
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
saiba se defender
argumentar
pense rápido
ganhe toda e qualquer discussão
mas seja honesto
e sincero
encontre alguém que te abale
que te mostre, afinal,
que mesmo sabendo tudo
argumentar
se defender
você está errado
pelo puro e simples fato
de que estar errado é nossa natureza mais real
encontre quem te vença
e agradeça
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
belga
- Eu não sei o que dizer.
- Mas é aniversário dela. Tu precisa dizer algo.
- Mas o quê? Ela sabe de tudo, já. Eu já falei tanto...
- Mas os outros não sabem.
- E eles precisam saber?
- Hm... acho que não.
- Então!?
- Mas é aniversário dela.
- Eu sei, eu sei. Eu queria dizer algo, mas não consigo. Não sei o que falar, não sei nada.
- Curioso. Tu sempre tem o que falar, sempre sabe, fala pra caralho.
- É. Menos hoje.
- Que é aniversário dela.
- Exatamente.
- Que coisa. Será que era isso que dizia o da Viola?
- "Sem melodia ou palavra"?
- "Pra não perder o valor".
- Não sei. Deve de ser. Ele entende bastante da alma.
- É. E ela?
- Me acalma. Ainda bem que é aniversário dela. Seria chato uma translação em que ela faltasse.
- Viu? Agora todo mundo sabe. Até o mundo!
- Mas é aniversário dela. Tu precisa dizer algo.
- Mas o quê? Ela sabe de tudo, já. Eu já falei tanto...
- Mas os outros não sabem.
- E eles precisam saber?
- Hm... acho que não.
- Então!?
- Mas é aniversário dela.
- Eu sei, eu sei. Eu queria dizer algo, mas não consigo. Não sei o que falar, não sei nada.
- Curioso. Tu sempre tem o que falar, sempre sabe, fala pra caralho.
- É. Menos hoje.
- Que é aniversário dela.
- Exatamente.
- Que coisa. Será que era isso que dizia o da Viola?
- "Sem melodia ou palavra"?
- "Pra não perder o valor".
- Não sei. Deve de ser. Ele entende bastante da alma.
- É. E ela?
- Me acalma. Ainda bem que é aniversário dela. Seria chato uma translação em que ela faltasse.
- Viu? Agora todo mundo sabe. Até o mundo!
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
a vida e a vida de joaquim
Joaquim nasceu no verão de 1963, em uma típica família de classe média, com pais levemente desajustados e clientes assíduos da terapia reichiana. Ele, menino, cresceu com saúde física e mental quase invejável, vindo a sair de casa quando jovem para cursar uma das melhores universidades do país. Voltou à casa dos pais muitas vezes, mas seus negócios na capital federal o faziam estar mais presente era na vida do próprio filho, que como ele cresceu quase invejavelmente saudável, e era até mais inteligente que o pai. Da mãe não se fala muito, a mulher de Joaquim. A vida foi boa, olhando em retrospecto, e se houvesse se lamentado durante o correr dos anos, Joaquim sentiria remorsos por nutrir sentimentos ruins. A sorte nunca lhe sorriu como o gato de Alice, mas também não abriu um sorriso de orelha a outra com um canivete. Joaquim, velho, estava feliz por ter sabido levar a vida com calma e tranquilidade, respirando sempre e reclamando pouco. Morreu de morte natural.
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
domingo, 16 de setembro de 2012
quatro quatro
Sentei no chão para meditar. Lá fora, no fim da rua, vizinho ouvindo música africana. O cachorro de repente correu da cozinha pro meu tapete, deitou entre minhas pernas cruzadas em meio-lótus e virou a barriga pro ar.
Entrando e saindo, com calma, respira seguindo cadeias do karma, respira, respira, não preste atenção a mais nada, mais nada, nem preste atenção na dentada que o cão acabou de te dar no dedão.
Parei de respirar. Ou, ao menos, de prestar atenção no respiro. O cachorro espirrando e mordendo meus dedos, deitado entre os pêlos caídos no chão, mordia minha mão e a tirava do mudra universal. Mudra universal. Atirava do mudra universal.
Não, não. Tirava a mão, a minha, do mudra universal, foi o que eu disse. Palma sobre palma, ponta dos dedões levemente encostadas, esse é o mudra, o universal. Existem vários. Com o cachorro chinês mordendo as falanges, hoje meditei com o mudra do cachorro doido, música africana tocando lá fora.
O cão não entra no meu quarto. Não pode. Fui pavlov com ele, e mesmo com a porta aberta o focinho não passa dela. Mas hoje, depois de me morder feito um louco, botou-se nas patas um pouco e foi porta adentro explorar. Meditando, pensava que não pensando não pensando não se importe deixe o cachorro deixe o cachorro não há problema não há porque não há não há nada em teu quarto é teu nada é teu teu não há tu não há não há nada nada eu não não cão quarto deixa o cachorro em paz!
Deixei. Voltando à respiração, a atenção não se encachorrou.
Acho que ele reparou, porque pouco tempo após veio lamber meus braços e minhas mãos como quem dissesse "pronto, irmão, meditação acabou".
fez-se book
caio
fernando
abreu
três amigos inseparáveis
dando likes
e shares
pela night
a pé
até que caio cutucou a menina de abreu
e fernando, apaziguando
pô-se no meio e morreu
fernando
abreu
três amigos inseparáveis
dando likes
e shares
pela night
a pé
até que caio cutucou a menina de abreu
e fernando, apaziguando
pô-se no meio e morreu
sábado, 15 de setembro de 2012
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
angelologia I
Angelo viu uma flor ao chão, abaixou-se e a tomou entre os dedos. Continuou seguindo caminho, a flor amarela e branca coçando entre seus dedos, a mão meio fechada, meio aberta para as pétalas respirarem. Ele não olhava para a flor. Nem para o caminho, na verdade. Olhava, isso sim, para o alto de um morro que logo logo subiria. O Morro da Agonia. Pelo menos naquele momento, momento adiado adiado adiado mas que não adiantou, afinal, e foi que ele se pôs a ir. Tinha de falar com ela e não havia mais “mo-tivo al-gum para enrolar”, ela dissera ao telefone. Ele desligou. Ela desligou, na verdade, mas ele gostava de pensar que tinha tomado a iniciativa, desligado na cara dela e saído por cima, ao menos aquela vez. Em cima, na realidade, estava ela. Acima. No alto do morro.
Uma borboleta pousou em sua mão. Na mão fechada. A outra mão, sem a flor – é bom esclarecer – a outra mão não existia. Tinha ficado em solo estrangeiro, numa guerra, há muito tempo. De modo que Angelo só tinha uma mão, a esquerda, que segurava levemente uma flor brancamarela e servia de pousadouro a borboletas. Porque mais uma se juntava à primeira, uma um pouco mais feia, sem tanto colorido nem muitos adornos. Uma mariposa, parecia, mas era uma borboleta, porque Angelo perguntou assim que ela pousou:
- És também uma borboleta, és?
E ela disse que sim, era uma borboleta. Voltou a olhar para o alto do morro, e ambos os pares de asas alçaram vôo justamente para lá. A flor, intocada.
- Não posso ir aí agora, Deise, não dá.
- Pois venha. Venha sim, e agora, e já. Venha, Angelo, eu mando, tu vens, e pronto.
Ele desligou. Tá, tudo bem, ela desligou, mas ele desligou, deixe-o pensar assim. Ele desligou, olhou o espelho e viu de relance sua imagem refletida. A moldura amarelada do espelho trincado era mais interessante, e a cada dia ele descobria uma mancha nova. No espelho e na moldura. Hoje, extraordinariamente, uma mancha também em seu rosto cansado. Mas não era uma mancha de cansaço, como poderia parecer, era não. Uma mancha de mamão, do café-da-manhã, ele supunha. Eram dez da noite. Menos de uma hora para encontrar com Deise. Menos de uma hora para andar mais de uma hora, entendem? Ele andou. Seria indelicado demais deixá-la esperando depois de ter, ora, desligado o telefone em sua cara. Na cara dela.
Quando colocou o primeiro pé na trilha que subia o morro, o tempo mudou. Um vento forte soprou do sul e de repente a luz da lua ficou encoberta. Passou rápido, de todo modo, e ele já estava no meio do caminho quando a lua surgiu outra vez. Sua mão abriu, involuntariamente, e a flor voltou ao chão. Rolou uns metros abaixo e parou, apoiada numa pedra musguenta. Ele não desceu imediatamente para buscá-la, não; apertava a mão esquerda entre os dentes, tentando arrancar o ferrão da ferroada que fizera-o abrir os dedos. Abelha desgraçada!, pensou, e pisou nela com toda a força – na abelha que se contorcia moribunda na trilha, sem rabo, à sua frente.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
um poema velho em que faltava último verso
espero que um poema
se escreva
que um amor vire certeza
e espero por um nome.
passam dias e mais dias
passam ventos
poesias
passam jornais bolas de futebol crianças brincando sorrisos meninas pedreiros torres de transmissão da rede globo e torre eiffel passa tudo por meu peito mas pela minha vista não passam teus trejeitos só teus lábios
me sussurram
que já fostes,
que tu some.
e a soma de todo o medo
de perder teu horizonte
não tocar mais teu cabelo
desce na garganta como um nó de marinheiro.
espero por um nome
por teu nome
que eu chame e pelo qual
tu volte.
Mas amor não chama nome,
chama?
só é fogo que arde sem se ver
só ferida que dói e não se cuida
amor é quando vou à luta
pra que tu não sussurre
nunca
que já vai...
como amor não tem um nome
eu espero pela paz
segunda-feira, 3 de setembro de 2012
femen
mulheres nuas manifestando
contra as agruras do capital
mulheres nuas
contra
agruras
do capital patriarcal
machista
mulheres nuas
manifestando
contra machista
só fazem machista
rir
machista não muda nada
porque ele quer mesmo ver
mulher pelada
domingo, 2 de setembro de 2012
sexta-feira, 31 de agosto de 2012
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
história de terroir
Correndo pela floresta ele sentiu sua perna coçar. Pouco, no início, nada alarmante.
Depois, a cada passo dado na direção exata do meio do mato, mais e mais por
floresta adentro, sentiu sua perna coçar com um tormento espalhado no corpo
inteiro. Sem diminuir o ritmo, sem sair da trilha, olhou para a perna que já
formigava com os calores do inferno, uma alergia fatal. Seu nariz ficou
mais sensível aos cheiros da mata e os ouvidos ouviam os grilos e esquilos e
patos no lago distante. Seu
cachorro, correndo do lado, passo a passo sincronizado, arfava com o ribombar
de um tambor. Do trovão. Seu cachorro parecia que ia morrer, correndo, enquanto
sua perna coçava.
No breve
instante em que desviou o olhar da trilha para olhar a perna, viu o vermelho
espalhando rápido a partir da canela. Lembrou sem esforço do momento exato em
que, entrando no mato, passara por uma espécie bem rara de urtiga. Sentiu,
no exato momento em que a planta tocou sua pele, que aquela era a planta que
não podia, sob hipótese alguma, tocar sua pele. Ele sabia. Conhecia as
histórias.
Quando a erva do mato-bravo tocasse três vezes a perna de
qualquer gaiato, a morte não tardaria mais do que o tempo de uma corrida. E
quando lembrou da coceira, no início da trilha, lembrou também da outra vez em
que tal sensação o aturdira. Três dias atrás, embora ele não tivesse certeza.
Não naquela exata floresta, mas bem próximo a ela, num pedaço de bosque ligando
uma vila a outra, passando por sobre um rio e por uma horta, um pomar vistoso
que verdejava na casa abandonada do fim da estrada.
Da primeira vez em que sua perna coçara daquele jeito,
vermelha daquele jeito, ele não sabia ainda da história antiga. Curioso, desviou-se do caminho
estreito para escarafunchar um monumento velho coberto por plantas,
trepadeiras, limo e tempo. No alto do monumento, espécie de pedestal
sustentando um cruzeiro e um pequeno altar, estava a imagem quebrada de um
santo desconhecido. Talvez uma santa. Faltavam-lhe braços, cabeça e parte do
tronco. No corpo do monumento, algo escrito era encoberto pelas trepadeiras de
anos e anos a céu aberto e nenhum cuidado.
Aproximou-se. Com as mãos firmes de quem desconhece o medo
arrancou algumas das plantas que tapavam o velho letreiro. Sentiu seus pés
coçarem no mesmo momento em que leu, com dificuldade, a única palavra ainda não
consumida pelo vento e pela mata. Renaissance.
Renascimento.
Não atinou com o sentido daquele escrito até pouco tempo
depois, quando sua perna vermelha e povoada de pontos negros chamou a atenção
da dona de seu albergue, pequena casa de madeira escondida na floresta fria.
Soube, então, da história. Ou parte dela, já que mesmo com
sua atenção completa o francês da floresta soava a ele como uma música
esquecida, celta e sem escrita direta. Mas soube da história, tão bem quanto pôde. O mato-bravo, dissera
a velha, crescia no pedestal da Santa esquecida, da Santa desmembrada. Havia um
nome, para a santa, mas ele não compreendera. Não importava, de todo modo.
Importava saber tão-somente que ali, no norte do grande bosque, aquela erva
rasteira carregava consigo segredos do fim do mundo, do fundo do chão da terra.
Da parte daquela floresta em que se depositam os mortos, e os esquecem.
Mas não há com o que se preocupar, dissera a velha. A erva
cresce somente no pedestal, ao que se saiba, e para que qualquer mal o ataque –
doença, peste, morte, raiva – três vezes a desatenção é necessária. Quer dizer,
não volte ao monumento e nada dará errado, dissera a velha.
Mas
enquanto corria, sentia a perna tão vermelha pesada e negra quanto no dia da
Santa antiga. Sabia, agora, que nem só naquele pilar a tal da erva existia.
Por isso ninguém se mete floresta adentro, pensou. Mas continuou correndo. Sentia sua boca grudada, a saliva
pesada e seca cansando a respiração. Ouvia o trovão ofegante do cachorro a seu
lado. Olhando bem, agora, via as marcas negras na pele vermelha de urtiga
escondida pelo pêlo do animal. Não sabia contar quantas vezes tivera
ele, cachorro, tocado naquela planta.
Alguns passos mais, soube que foram três. O pêlo rubro
do cão ofuscava a vista do mesmo jeito que seu arfar alcançava ambas as pontas
da trilha. Os olhos injetados do animal só amenizaram a expressão de horror
quando ele tombou, quatro patas mirando os céus, e rolou para o rio lá embaixo.
O som dos grilos era cada vez mais forte, e agora ele era
capaz de ouvir, prestando atenção, o motor dos carros na estrada distante. Não
sabia a cor de seus próprios olhos, mas pela pressão das retinas podia
imaginar. Vermelho, carne-viva. Foda-se, pensou, foda-se, é só não tocar mais
nessa planta maldita, nessa filha da puta. E sair daqui o quanto antes, voltar
pra cidade, voltar pra minha vida.
Sentiu o cheiro do fim da trilha, poucos quilômetros
adiante. A despeito da coceira na perna, que já subia ao tronco, mantinha um
bom ritmo desde o início. Sabia que terminaria a trilha em não muito tempo. Mas
sua vista, também excitada pelos efeitos daquela alergia, enxergou desde longe
o que o esperava antes do fim do caminho. Gelou, e seu coração compassado ao
ritmo da corrida passou a bater rápido, mais rápido do que deveria.
À sua frente, um muro de urtigas cobria toda a floresta.
quinta-feira, 16 de agosto de 2012
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
lógica do clube
Da janela a oeste vem o som de máquinas trabalhando, máquinas que não param. Da janela leste o som de pássaros voa dentro, passa por minha mente em duas voltas e vai embora, pra cima de um galho. Pássaros param.
Sentado, com a cerveja na mão e o vazio vasto sobre a mesa antiga, ouço do fundo do palco o piano aumentando pouco a pouco seu volume.
Há tesouros por toda parte. Quieto, parado, feito um pássaro calado sobre a madeira de uma árvore já morta, sou como máquina. Há tesouros por toda parte, e sou um caça-níqueis definitivamente quebrado.
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
quarante troisième
O sol na teia de aranha ilumina um canto do quarto com brilho de caçador. É manhã. Tremendo presa a ela não sei se está aranha, mosca, folha ou estrela perdida da noite anterior.
Voa um vento quarto adentro, erguendo as folhas da mesa e varrendo os pensamentos. Post-its colados no mundo amarelecem parede de um mapa de azul profundo.
No fundo de algum oceano há de haver, mesmo no instante agora, uma grande teia marinha impedindo que as águas fundas acabem por ir embora.
A vocação das águas é trocar de casa.
quarta-feira, 18 de julho de 2012
terça-feira, 17 de julho de 2012
contos de fábulas XI
Confrontado pela impetuosidade do jovem imperador, o regente mantinha-se tranquilo. No salão em que se encontravam, aias e pajens fingiam-se ocupados para fugir às palavras áridas do pequeno governante. O regente não. Já ouvira antes aqueles mesmos brados, ímpetos e agressões. Quando o imperador perdeu o fôlego, após muito gritar, o regente apenas comentou:
- Você pode negar muitas coisas, mas não pode negar tudo. Tudo é a única coisa que não compreendemos.
segunda-feira, 16 de julho de 2012
política [sic]
A mulher Collor de Mello foi à TV. Sobre a política, pouco importa. O que importou foi religião. 20 anos depois do impeachment, não faz qualquer diferença saber o que pôs ou tirou o homem Collor de lá.
Por outro lado, 90/92 ressoa no imaginário brasileiro como algo tão negativo quanto a ditadura. Foi um dos "períodos nefastos" do Brasil, em que o povo se mobilizou para derrubar as forças do Mal que presidiam isso tudo.
Mas no ano em que o IBGE evidencia o crescimento crístico das comunidades evangélicas, a mídia volta 20 anos no tempo não para falar sobre política: ela volta no tempo para falar sobre os nefandos poderes da magia negra. O que pouco importa, também, porque cada um reza para aquele em quem crê, e tirando o sacrifício animal não faz diferença se a magia é negra, branca ou furtacor.
Enquanto a maioria se preocupa em criticar a reclamação sobre a pensão de 18 mil, pouca gente percebeu uma inferência curiosa: se um dos piores momentos do Brasil foi causado por magia negra, e se hoje a mulher Collor de Mello admite isso por se ter convertido a Cristo, brinca-se com o imaginário político dizendo algo como
a única forma segura de política
é a baseada no Evangelho.
Essa, minha gente, é a boa nova, que nem a Renata do Fantástico nem os indignados pela pensão estão apontando com justeza.
Ah, é verdade, ela também vai lançar um livro. Porque todo mundo lança livro. Justin Bieber lançou um livro, por que ela não lançaria? Bela Academia...
sexta-feira, 13 de julho de 2012
42
Vez ou outra uma lembrança chega, vinda de dentro da bolsa. No fundo sujo de uma mochila velha, meio laranja amarela, que já rodou pelo mundo, de vez em quando u'a memória brota.
É quando meto a mão ali dentro e puxo de uma caneta, por entre uma camiseta, cueca e barbeador. Mochila velha, suja e bagunçada, que não tem ali quase nada mas tem tudo que eu tenho pra por.
Um bilhete de trem desde o sul, pra Taipei. A passagem do teleférico subindo a escarpa, as pedras, levando a mim e a ela pro alto do mar português. Uma nota fiscal escrita em árabe, café da manhã no Marrocos, nosso último café da manhã.
Eu não saberia fazer toda a conversão das moedas, com juros e correção. Não sei quanto vale hoje o que valeu cada um dos pedaços manchados de papel.
Um pedaço de papel fino, estreito, sujo, tão velho que não tem mais nada escrito, e que agora uso pra anotar seja lá o que for. O que será que era antes? Quando tinha algo escrito, em que língua? Teria sido algo interessante ou só a conta do bar da esquina?
Minha mochila guarda mais coisas que eu. Mas até ela é pequena.
quarta-feira, 4 de julho de 2012
terça-feira, 3 de julho de 2012
domingo, 1 de julho de 2012
sexta-feira, 29 de junho de 2012
quinta-feira, 28 de junho de 2012
quarta-feira, 27 de junho de 2012
quinta-feira, 21 de junho de 2012
contos de fábulas X
- Por que você usa sempre camisinha, mesmo que o cliente ofereça muitas mais peças de cobre? - perguntou o regente à prostituta da cidade.
- Porque não quero colocar no mundo mais filhos da puta.
- Porque não quero colocar no mundo mais filhos da puta.
contos de fábulas IX
O imperador andava de um lado ao outro da sala, mãos nas costas, preocupado, sol entrando pela janela alta.
- O que fazer, então? Propor um acordo, capitular, dar razão e mais controle ao Grão Khan do Catão? Afinar o coro dos contentes? Ou manter a resistência, arma em punho, bradar bravatas e ir de encontro ao sádico expansionista? Desafinar o coro dos contentes?
Uma voz da assembleia asseverou: "Afinar o coro dos descontentes".
Um bandolim na praça central tocou acordes, meio afinados, mas sem um coro que atrapalhasse seu trinado passaral.
No salão do imperador, sentado a um canto, em silêncio, o conselheiro permanecia corado.
segunda-feira, 18 de junho de 2012
contos de fábulas VIII
A espada caiu no mosaico do salão principal, ecoando por todo o castelo. O imperador estava aborrecido com algo, mas não aparentava: sua face permanecia impassível, tranquila. Até sorria um pouco.
- Que há, nobre senhor, vossa alteza?
- Nada. Apenas voltei para casa.
- No meio da guerra, meu senhor, vossa alteza?
- No meio da guerra não, que a guerra acabou. Acenei para o inimigo um "pronto, chega", virei as costas e vim-me embora.
- E... e o inimigo não vos perseguiu? Não vos emboscou? Não matou vossos pelotões?
O silêncio dos pássaros de outono cantava nas janelas altas do salão.
- Não.
- Mas... meu senhor, vossa alteza, perdoe-me a ousadia mas... mas e a honra da guerra? E a guerra justa, a boa guerra, a guerra que vale a pena ser combatida?
Agora o imperador, meia idade, sorria.
- Não há guerra que valha a pena ser combatida, meu amigo. Agora, se não for exigir demais de vossa servidão, sente aqui a meu lado e vamos acabar com uma ou duas garrafas de vinho.
contos de fábulas VII
Ensanguentado, com o mundo incendiado às suas costas, o velho imperador caminhara arrastadamente até a parede de pedra antiga. Chamuscada. Cansado, recostou-se e escorregou lentamente até o chão.
- Dia difícil? - perguntou o taverneiro, já idoso, sentado sobre um barril de sua melhor cerveja. Vazio.
- Ô - respondeu o imperador - Que fazes aqui, agora, no fim de tarde após o armagedão?
- Ah... minha preguiça me salvou do fim do mundo.
terça-feira, 12 de junho de 2012
contos de fábulas VI
Mirando seu reflexo no lago, o jovem imperador se perguntava o porquê de Narciso ter morrido. Por que ninguém salvara o belo rapaz? Por que, vendo que Narciso se afogava, ninguém perto do lago o foi salvar?
Então, no mesmo lago que o espelhava, o imperador viu surgir a imagem de um cavaleiro, um de sua guarda pessoal. E aí entendeu: não havia ninguém ao redor de Narciso, nem perto do lago, porque toda imagem que não fosse a dele seria uma mancha impossível de aguentar.
O guarda não entendeu a razão de o imperador sorrir. O imperador, por sua vez, pensava que havia sido, por fim, um bom pagamento: obcecado em livrar seu espelho de qualquer mancha, Narciso se afogando terminou por lavar a própria arrogância.
sábado, 9 de junho de 2012
pegadas na areia
E quando olhei pra trás não vi minhas pegadas na areia. Apenas a marca de um pé, que não o meu, estava sob as ondas que pouco a pouco invadiam a praia. Então compreendi:
Nos momentos de maior dificuldade, fui carregado nos braços
pelo saci.
Nos momentos de maior dificuldade, fui carregado nos braços
pelo saci.
contos de fábulas V
- Jogue-o no calabouço, regente, execute-o!
O jovem imperador entrava na adolescência. Era todo fúria e ímpeto, tempestade de autoridade recoberta com manto azul. O regente ditou a sentença: trabalho nos campos comunitários, cárcere provisório e assistência às obras da igreja. Voltaria a ver sua família apenas dois anos depois.
- Mas ele conspirava contra o trono! Não, pior, ele conspirava contra a cidade! Talvez contra o império! Não podemos deixá-lo livre, não podemos deixá-los pensar que venceram, que qualquer um pode ameaçar a ordem do mundo!
- O mundo está cheio de pequenas teorias da conspiração, vossa alteza. Teorias de conspirações e mesmo de conspirações reais. Até para falarmos contra elas devemos ser precavidos: nunca sabemos quando nosso discurso poderá soar conspiratório.
sexta-feira, 8 de junho de 2012
contos de fábulas IV
Adulto, o imperador se arrastava ao fim da batalha. Seu braço lacerado, espada ensanguentada, rosto suado escorrendo por sobre a armadura centenas de preocupações.
Havia vencido, mas o mundo parecia escuro à sua volta. Quando entrou na tenda reservada a seu descanso, lá estava o ex-regente.
- O que faço, senhor? Se luto pela Verdade, Justiça, pela Luz, por que tudo parece escuro assim?
O velho nunca gostara de guerra: em seus tempos de regente apenas dera ordens que defendessem o império, tentando nunca iniciar um embate. Não era bom de ofensivas, não gostava delas, não julgava serem boas nem quando eram para o Bem.
- Se buscas a luz, vossa alteza, olhe para a Luz. Se olhas a escuridão, meu senhor, verás escuridão. Mas mesmo ao olhar a Luz, ao se guiar por ela, não sejas a luz. Ser a Luz vos impede de compreender a escuridão.
contos de fábulas III
Sentado na muralha do castelo, com as pernas balançando sobre o vazio daquela encosta, o jovem imperador procurava a origem dos piados que ouvia.
De pequenos buracos ao longo do muro, rachaduras, frestas antigas, ao lado do limo crescente cresciam também outras flores, plantas, trepadeiras-roxas de primavera. Com elas, pequenos pássaros adornavam suas casas, piando ao som do calor das montanhas.
Não que aquela parte do império desconhecesse a guerra. Pelo contrário, poucos meses antes inimigos investiram contra os muros, e onde escorriam cantos antes correra sangue. Mas as plantas não são breves como a vida.
Do alto da muralha o imperador procurava a voz dos cantores ocultos, nos pequenos rincões que adornavam a mais dura e fria fortaleza.
contos de fábulas II
A tensão chegou ao ápice, no alto da montanha.
- Você não pode ser um místico em um mundo sem heróis!, gritou o jovem imperador com sua espada em punho.
- E vossa alteza não pode ser herói em um mundo sem contemplação. Em algum momento a ação chega ao fim, e se o olhar não estiver treinado o mundo pelo qual se lutou tanto desaparece bem à sua frente.
O lavrador ouvia calmamente a discussão, enxada arando a terra ao sopé do monte dos reclusos. O sábio era sábio, pensou, alteza era brava, pensou. E prosseguiu cavando sulcos na terra úmida.
quinta-feira, 7 de junho de 2012
quarta-feira, 6 de junho de 2012
segunda-feira, 4 de junho de 2012
domingo, 3 de junho de 2012
sexta-feira, 1 de junho de 2012
terça-feira, 29 de maio de 2012
domingo, 27 de maio de 2012
sexta-feira, 25 de maio de 2012
olhando-se demais
sem ver
o tato sem tocar
o senso sem saber
e o santo sem sentir
aquilo que não crê
os membros que andam vão
atrás de um breve ser
de frágil encarnação
espírito a ter
ateus a espirrar
por sobre vendavais
eu próprio já não sou
e eles não são mais
meu corpo não é meu
nem nada a mim pertence
e olhando logo vê-se
que eu mesmo já não hei
como não há fazeres
que afaguem fonte em si
no dia em que me olhei
eu não me vi
sem ver
o tato sem tocar
o senso sem saber
e o santo sem sentir
aquilo que não crê
os membros que andam vão
atrás de um breve ser
de frágil encarnação
espírito a ter
ateus a espirrar
por sobre vendavais
eu próprio já não sou
e eles não são mais
meu corpo não é meu
nem nada a mim pertence
e olhando logo vê-se
que eu mesmo já não hei
como não há fazeres
que afaguem fonte em si
no dia em que me olhei
eu não me vi
contos de fábulas
Naquele tempo o imperador ingressava na carreira militar. Seus muitos professores de estratégia, combate, artilharia, sobrevivência, diplomacia, espionagem, todos o orientavam aos mais altos ensinamentos e segredos desenvolvidos ao longo da história. Eram aqueles ensinamentos que o preparariam para a administração do império.
Apenas seu regente mantinha silêncio. Por mais que estivesse envolvido na defesa do império, nos tratos diplomáticos, na organização de comitivas e alianças, não orientava o jovem imperador em assuntos práticos da guerra e governança.
Um dia, entretanto, levou-o do palácio cedo pela manhã. Antes dos galos acordarem, imperador e regente estavam aos pés dos campos, observando os já iniciados trabalhos de lavra ao solo.
- O que fazemos aqui? - perguntou o imperador.
- Observe. Há meses este solo foi arado, semeado e pacientemente observado. Os homens que aqui trabalham nunca nos viram de perto, e jamais sonhariam em adentrar à cidadela, ou ao palácio.
- E que há demais nisso? Tenho inúmeras terras cultivadas por gente como essa, em diversas partes conquistadas de meu império.
- De vosso futuro império, vossa alteza. E sim, de fato há muitos. Entretanto, nenhum deles sequer saberá o que acontece em vosso palácio.
O imperador ouvia, impaciente.
- E a despeito disso, o palácio depende desses campos. Destes campos. Observe o trabalho dos homens, cansados desde a manhã e dedicados a essa lavoura. Lembre dos legumes, dos frutos da terra que enchem cada banquete feito em vossa honra. Tudo depende daqui. Se queres compreender o que é saber lidar com vosso próprio império, observe a terra. Há que dar mais atenção à colheita do que à conquista.
terça-feira, 22 de maio de 2012
sábado, 19 de maio de 2012
há rostos que, depois de tempos
começas a enxergar de outro jeito
é como se agora fosse visto ao contrário
como se a vista de outro ponto
começasse a ver de dentro
ou algo assim
desconhecendo um rosto conhecido
olhando os olhos primeiro, sorriso,
então a pele que envolve uma alma
cabelos que a cobrem
essas coisas
e não há nada
aparentemente
que faça com que isso aconteça
de repente você olha pra cabeça
e pronto
o mundo simplesmente já é outro
começas a enxergar de outro jeito
é como se agora fosse visto ao contrário
como se a vista de outro ponto
começasse a ver de dentro
ou algo assim
desconhecendo um rosto conhecido
olhando os olhos primeiro, sorriso,
então a pele que envolve uma alma
cabelos que a cobrem
essas coisas
e não há nada
aparentemente
que faça com que isso aconteça
de repente você olha pra cabeça
e pronto
o mundo simplesmente já é outro
sexta-feira, 18 de maio de 2012
en français
je me demande
ce que j’attends
et j’attends la réponse
rien ne vient
il n’y a donc rien à attendre
pas de vague mémoire future
pas de circonstance obtuse
rien qui ne se soit pas déjà réalisé
quand je ne me réponds pas
je réponds à ce qui fût demandé
(Tradução: Florine Thomas)
ce que j’attends
et j’attends la réponse
rien ne vient
il n’y a donc rien à attendre
pas de vague mémoire future
pas de circonstance obtuse
rien qui ne se soit pas déjà réalisé
quand je ne me réponds pas
je réponds à ce qui fût demandé
(Tradução: Florine Thomas)
quinta-feira, 17 de maio de 2012
terça-feira, 15 de maio de 2012
domingo, 13 de maio de 2012
esperar pelo fim do mundo
é como aguardar
em nível cósmico
o sucesso e superação
da coisa toda
é olhar a realidade
como se ela fosse um executivo
com uma pasta no braço
com papéis e firmas reconhecidas
passando parcelas da vida
a sócios engravatados
esperar pelo fim do mundo
é ver uma meta final
mesmo que ruim e explosiva
procurar por um fim pra vida
ter uma meta
um objetivo
uma gravata
é como fazer da vida
caminho pro fim do mundo
a menos que seja
u'a gravata florida
é como aguardar
em nível cósmico
o sucesso e superação
da coisa toda
é olhar a realidade
como se ela fosse um executivo
com uma pasta no braço
com papéis e firmas reconhecidas
passando parcelas da vida
a sócios engravatados
esperar pelo fim do mundo
é ver uma meta final
mesmo que ruim e explosiva
procurar por um fim pra vida
ter uma meta
um objetivo
uma gravata
é como fazer da vida
caminho pro fim do mundo
a menos que seja
u'a gravata florida
vejo o vizinho velho
sair caras à janela
refletido em minha janela
aberta
de onde estou eu não sou
capaz de ver o vizinho
sem ser pelo vidro aberto
da janela branca que viso
deitado na minha cama
dois prédios u'a rua
janelas e vidros
um mar céu cerúleo
vítreo
de distância
vejo o vizinho velho
e a velha do velho vizinho
os dois saindo à janela
e sinto
que desde a janela pra dentro
existe um mundo infinito
sair caras à janela
refletido em minha janela
aberta
de onde estou eu não sou
capaz de ver o vizinho
sem ser pelo vidro aberto
da janela branca que viso
deitado na minha cama
dois prédios u'a rua
janelas e vidros
um mar céu cerúleo
vítreo
de distância
vejo o vizinho velho
e a velha do velho vizinho
os dois saindo à janela
e sinto
que desde a janela pra dentro
existe um mundo infinito
quinta-feira, 10 de maio de 2012
quarta-feira, 9 de maio de 2012
esperando godô
- Bicho...
- Digaí.
- Que é aquilo?
- Quilo o quê?
- Aquilo ali, mermão, aquilo ali.
- Ali? Sei não.
- Pô, vai lá ver.
- Vou não, rapá, vou não. Tá longe, o bicho.
- Bicho...
- Digaí.
- Já sei que é.
- Que é, então?
- É um lance, saca?
- Saco nada. Que lance, seu maluco?
- Ô rapá, é o lance lá de longe.
- E cumé que tu enxerga?
- Ah, tô só seguindo as luzes.
- Só...
- Digaí.
- Que é aquilo?
- Quilo o quê?
- Aquilo ali, mermão, aquilo ali.
- Ali? Sei não.
- Pô, vai lá ver.
- Vou não, rapá, vou não. Tá longe, o bicho.
- Bicho...
- Digaí.
- Já sei que é.
- Que é, então?
- É um lance, saca?
- Saco nada. Que lance, seu maluco?
- Ô rapá, é o lance lá de longe.
- E cumé que tu enxerga?
- Ah, tô só seguindo as luzes.
- Só...
domingo, 6 de maio de 2012
dharma do cheiro do ralo
Quando as coisas curiosamente se tornarem tortas, estranhas, fora do lugar como uma foca albina, não sinta pena de si mesmo, nem de nada, nem de voo. Quando as coisas se esquecerem delas próprias, não se esqueça. Se alguma coisa for engano, se algum engano for a coisa, o meio termo de tua vida não deve te deixar de cama. A um nível cósmico tua vida não importa. A um nível micro, há mais coisas a fazer. O teu pequeno incômodo não se encontra nem na alta nebulosa nem na urgência do banheiro, na pequenez do ralo entupido, da banheira. Confie que o universo sabe tomar conta de si. Quando tua meia vida parecer errada, faça o que é preciso fazer, dê atenção ao que precisa ser atentado. Ajoelhe-se e limpe o ralo. Não há qualquer razão para tua mente estar em outro lado, em outro estado. Se a água não escoa mais, se é de limpeza que ali precisa, chegue lá, faça aquilo. De joelhos nos ladrilhos, com as mãos - de preferência -, seja a limpeza. Ouça as nebulosas longe se movendo, ouça estrelas, olhe a água suja a ser sugada novamente. Se o ralo entope, limpe-o. Não há qualquer razão que te autorize a não fazê-lo.
sexta-feira, 4 de maio de 2012
quinta-feira, 3 de maio de 2012
éden
eva, alucinada
viu no de adão uma serpente
e deu na sua bola uma dentada
pensando que era fruta diferente
não foram postos fora por comerem
de árvore do sábio fruta alguma
deus se ofendeu foi com o xingo
que adão berrou aos céus
filhadaputa!
viu no de adão uma serpente
e deu na sua bola uma dentada
pensando que era fruta diferente
não foram postos fora por comerem
de árvore do sábio fruta alguma
deus se ofendeu foi com o xingo
que adão berrou aos céus
filhadaputa!
terça-feira, 1 de maio de 2012
dia do trabalho
- Filho você já tem idade suficiente para que eu lhe conte, afinal.
- Me conte o que, papai?
- Para que eu conte como o mundo funciona.
- Oh!, e funciona como?
- Com duas pilhas palito.
- Me conte o que, papai?
- Para que eu conte como o mundo funciona.
- Oh!, e funciona como?
- Com duas pilhas palito.
domingo, 29 de abril de 2012
cama sutra
escrevia sobre as mulheres
mas só algumas achavam estranho
servir de tampo de mesa humana
mas só algumas achavam estranho
servir de tampo de mesa humana
sábado, 28 de abril de 2012
ismael
chama-me antiquado
normativo
arrogante
um fascista
mas não creio em mundo bom
com uns textos ruins assim
normativo
arrogante
um fascista
mas não creio em mundo bom
com uns textos ruins assim
sexta-feira, 27 de abril de 2012
o luar
a lua
reflete sobre o vidro
do tampo da minha mesa
igual e diferente
a poetas do mundo inteiro
escrevo sobre a lua
reflete sobre o vidro
do tampo da minha mesa
igual e diferente
a poetas do mundo inteiro
escrevo sobre a lua
o homem que comia pãos
Partia ao meio, pão por pão, rancava miolo e passava um queijo cremoso feito em Minas. Pouco queijo cremoso, muito pão. Tinha dinheiro não, pra ser de outro jeito. Presunto, peito, salsicha que seja? Nada. Comia pãos um atrás do outro, minuto depois do antes, dia após dia, comia.
Casa de taipa. Taipão, assim, beira-rio. Tinha dinheiro não, meu fio, tinha não. Morava lá pra lá, sem escola em criança, sem serviço em adulto, sem livros nas estantes. Sem estantes. Não sabia que plural de pão são pães, sabia não
por isso comia pãos.
no sentido bíblico
para adão e eva
disse deus:
- a fim de que possais
gerar a vossa prole
conhecer-vos-ão
então adão e eva
muito dos sacanas
pensaram é que era
pra se conhecerem
vocês sabem como
mas deus só queria
apresentar ao nono
sua própria cria
conhecer vôzão é que deviam
disse deus:
- a fim de que possais
gerar a vossa prole
conhecer-vos-ão
então adão e eva
muito dos sacanas
pensaram é que era
pra se conhecerem
vocês sabem como
mas deus só queria
apresentar ao nono
sua própria cria
conhecer vôzão é que deviam
paranormal
A sala estava escura quando entraram, tal qual o corredor. O cheiro de carniça empesteava o ambiente. Pedro pôs o pé pra dentro do primeiro quarto escuro e gritou. Jonas parecia ter caído.
- Você está bem?
- Não.
Jonas levantava aos poucos, tentando ser ligeiro. Só Pedro estava armado, porque o parceiro tinha nas mãos um corpo magro de um menino morto. Ou quase morto, ainda não sabiam. O ambiente estava mesmo muito escuro.
- Escuta, Jonas, como diabos esse menino foi parar nas tuas mãos?
- Não sei, cara, já disse. O corredor estava escuro e cheio de gente. "Gente", tu entendeu. Ele foi o único que não tentou me morder, então acho que não era assim tão mau. Digo, ele até tentou falar algo.
- "Atire na cabeça". Parece a porra de uma história de terror.
- Atire na cabeça, pois é. Por isso eu te falei. Atire na cabeça.
Do fundo do corredor que parecia levar à saída um par de brilhos vermelhos piscou um momento ou dois. Depois gritou, piscou de novo e correu. Pedro estava com a arma apontada pro meio dos dois pedaços de luz acesa, mas Jonas estava mais preocupado com a miríade de olhos de gato que começava a virar a esquina. O corredor tinha agora diversos olhos vermelhos piscantes, mas nem todos corriam. Só alguns vinham por vez, gritando e gemendo, enquanto o segundo grupo esperava de olhos abertos, atrás. Eram organizados, os filhos da puta.
- Zumbis não existem, cara.
- Não. Mas desde que descobrimos que um tiro no meio da testa - bang! - também mata vampiro, lobisomem, fantasma e a porra toda, por que eu desperdiçaria balas atirando no peito ou pernas? Zumbis podem não existir - bang! - mas deram uma boa educação balística pra nossa geração.
Os tiros ecoavam, certeiros. Agora até Jonas brincava de mate-o-pato, mesmo que não houvesse nenhum urso de pelúcia a levar de prêmio.
A horda caiu. Poucas balas restavam. Pedro, sorrindo, disse quase como um cumprimento: "atire na cabeça".
Quando abriram a porta, no terror escuro da madrugada, uma manada de mulas-sem-cabeça os esperava.
- Fodeu!
E eles correram.