Começou com um ovo. Na rua, o carro passava chamando ao megafone,
enquanto aqui dentro dormíamos eu, minha gata e a água da chuva que
havia meses se infiltrava pela fresta.
A fresta era uma falha sobre a janela, no batente, que não estava lá
quando chegamos mas pouco a pouco foi se formando. O senhorio disse
“Culpa da chuva!” e nem contestei. Melhor que pensasse assim e
não “Culpa sua, cobrarei no aluguel!”. Acontecera, em outra
casa. Não que a fresta fosse a mesma, mas...
O megafone chamava da rua, eu pensava se ia ou não ia debaixo de
chuva, maior aguaceiro, buscar uma bandeja de ovos para garantir a
semana. A gata me olhava meio duvidosa, meio dormindo, e a fresta
chovia. Resolvi, bem, por que não?
Naquele tempo eu ainda tinha uma capa de chuva, herança de meu avô.
Era bem velhinha, bem velhinha, mas de um tempo engraçado quando as
coisas eram feitas para durar. Meu avô, segundo minha avó, pescara
muitas e muitas pescarias com aquela capa carcomida, numa cor meio de
mar. Vesti a capa já saindo pela porta, molhando um pouco o pijama
no processo. Não se brinca com o carro do ovo que passa: ou a gente
corre, ou nunca que alcança o carro.
Lá ia eu, então, e lá voltava: bandeja de ovo na mão, o aguaceiro
ainda aguando as plantas todas de meu quintal, o telhado da casa, a
varanda inteira molhada, eu molhado, a capa de chuva encharcada e a
janela, pelo lado de fora, também deixando vazar a fresta. Um pouco
maior, parecia, do lado de fora que por dentro. “Dá nem pra
tapar,” pensei, sabendo que dava nem pra tapar enquanto a chuva não
cessasse.
Com cuidado para não derrubar os ovos, tirei a capa e a pendurei na
entrada, ao lado da porta. A bandeja, coloquei sobre a mesa da sala,
que na verdade era a cozinha também, e um pedaço do quarto. Casa de
arquitetura estranha, velhinha, bem velhinha, mas veja bem, ainda em
pé depois de décadas. Quem sou eu para reclamar da casinha de vovô?
Voltei para o quarto e deitei outra vez, um pouco molhado, molhando o
colchão. A gata se estirou e pulou fora, indo à ração, depois à
água, depois à porta, olhando o quintal onde choviam cântaros e um
ou outro passarinho ainda cantava em meio ao sonho sob as telhas do
quintal.
A fresta parecia maior, olhando agora. Não que entrasse mais água,
mas o espaço entre o reboco e a janela parecia. Maior, como se fosse
pouco a pouco se desgastando. A olhos vistos eu ia vendo, meio
molhado, a gata sumida sob a chuva, bandeja de ovos na sala, ia vendo
a fresta se alargando. Tomando certa forma. Ovalada, assim, digamos.
Notei que bocejava, mas já ia a meio sono.
Quando acordei, a gata se enrodilhava em meus pés. Encharcada.
Parecia a própria chuva sobre o colchão. Como se fosse nuvem
carregada. Dormia, a gata, e eu despertava num quarto sem luz. “Ué!?”
pensei. O celular sem bateria não me deu lanterna, e corri os olhos
pra janela. A fresta, e só a fresta, iluminava a água que ia
escorrendo parede adentro. Eu não enxergava a janela, não sei por
quê, mas a fresta estava lá, frestíssima, aberta, oval, aguando a
parede e o chão. Acumulando água e cal, tijolo e lodo sobre o
assoalho pouco encerado da minha casa.
Não que eu enxergasse o chão, tampouco, não. Mas a água
escorrendo ia assim, trazendo um reflexo de luminosidade. Eu via a
fresta rebrilhando o quarto, mas não via o quarto, e sentia a gata
encharcada a meus pés, mas não via os pés. A chuva continuava aos
potes, feito macondo. Pensei em me levantar para comer algo, talvez
um dos ovos que eu trouxera pra dentro... naquele dia, mais cedo? No
dia anterior? Ou fôra meu avô que correra lá fora a comprar, na
carroça, uma dúzia de ovo a Seu Zé?
Aquele cacarejar que acompanhava a chuva, o quê? Algo molhado se
remexia a meus pés, ciscava, um miado esquisito. Meus olhos abertos
viam apenas a fresta, uma fresta, a água escorrendo, acumulando-se,
eras e eras, onde eu estava? Ouvia lá fora o marulho e o rumor das
penas ao vento, a fresta ia crescendo, ovalando, chamando aqui dentro
alguma ação, como que um sonho. Senti meu bico, frágil e
jovenzito, forçar a fresta como se fosse tudo, como se fosse a única
coisa possível. Tudo que eu podia fazer era forçar aquela fresta,
lutar contra a água, sair ali para um mundo novo. O que me esperava?