segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

findano

Na mísera mesa do viajante não há papéis,
não há caneta,
não há nada.
Não há nem a caneca de lata
onde ele esquenta o café.
A mísera mesa do viajante não anda:
portanto, não é algo bom pra portar por aí.
A mísera mesa do andarilho fôra uma porta
quando ele a viu
e a fez de apoio.
Depois, dormiu.
Até que o caminho que foi
venha
a mísera mesa do viajante
é lenha.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

"Você está fazendo o que qualquer homem são

faria nessas circunstâncias. Está ficando louco!"

Heath Ledger acabava de sair do estúdio. Dez da noite, eram. Vinte-e-duas horas. A última cena filmada, a última fala, a última expressão de loucura e dor. Não era a última cena do filme, nem de longe. Era, antes, uma das primeiras. Filmada por último. Dali para frente viria a pós-produção, as viagens de divulgação, a estréia. No fim das filmagens, a filmagem do começo.

Boa noite, Mr. Ledger!

- Boa noite, Mrs. Catherine. Suas pernas doem menos, essa noite?

- Oh, sim. Aquela pomada é maravilhosa. Olhe, pegue esses biscoitos. Achei que você iria gostar.

- Não precisava, querida. Mas muito obrigado, a senhora é certamente a vizinha mais encantadora que já tive.

- E como vai o trabalho, meu bem?

- Me matando, Mrs. Catherine. Me matando. Preciso, sinceramente, dormir por dois dias seguidos.

Escadaria longa e escura. Estreita. Subia por dois andares, levando ao alto do sobrado. Mas parecia mais, parecia maior. Ledger sempre pensava estar caminhando ao topo do mundo, e não gostava daquela sensação. Não da sensação de subir ao topo de um mundo escuro, sombrio e doente como o daquele corredor.

“O que se espera de um homem? Sensatez? Loucura? Amor? Loucura? O que se espera de um louco? Humanidade?”, era isso que dizia, antes de ver a filha morrer. Antes de ver a filha morrer sem nem mesmo nascer de fato. Antes do parto. O Coringa, ou antes dele, aquele homem chorava desesperadamente. Por dois minutos, e só. Por dois minutos ensaiados, amaldiçoando o mundo, a loucura de sua vida e a vida de loucos como aqueles dois. Um minuto para cada um, ele chorou. Rindo, depois disso, levantou a tempo de matar os três. Os homens-dos-minutos e sua própria esposa, que ainda parecia viva. Não tinha razões para fazer aquilo. Tampouco razões para não fazer.

- Casa... finalmente. Quero dormir, eu juro que quero. Quero dormir. – e acendeu a luz. As luzes. Todas elas. Desde que iniciara o projeto, desde que lera o roteiro (e talvez desde antes, desde que conhecera o Morcego e aquele terror noturno constante e onipresente) não conseguia apagar as luzes. Não se sentia bem no escuro. Sentia as sombras o espreitando, fechando o cerco, formando cercas que sua visão não conseguia ultrapassar.

Desde que rira pela primeira vez, alto, desfigurado, com o rosto branco feito a lua. Desde aquele dia não dormia, não sorria para si. Só para os outros, só para as câmeras. Seu riso, agora, era do Coringa. Lunático. Psicótico. Fugindo das sombras a cada passo, em cada ângulo. Dormia com suas luzes acesas, e sonhava com cavernas alagadas, escuras e deformadas. Sonhava com loucura.

Na mão esquerda, dois comprimidos. Na direita, uma dose de vodka. Seu corpo sentava ao chão, cercado por quadrinhos, garrafas de bebidas e frascos de remédios para dormir. Para dormir sem sentir nada. Seu corpo caía ao chão, cansado, como a lata de biscoitos que acabara de abrir. Ledger chorava, como fazia em todas as noites desde há muito. E engolia os comprimidos. E a vodka. E um pedaço da capa daquele quadrinho antigo, comprado em sua infância. Era o que parecia o lógico, a única coisa a ser feita, naquele momento: engolir a capa do Homem-morcego. Talvez, pensou, digerindo as sombras que não me deixam em paz, eu possa dormir. Eu quero dormir. Ele queria dormir.

Mais dois comprimidos. Mais três, após. As sombras tinham movimentos estranhos, Mrs. Catherine parecia gritar, lá de baixo, um facho de luz amarela enorme cortava os céus. Um sinal negro, dentro dele. Um sinal vermelho-sangue dentro do peito daquele homem. O sinal luminoso lembrava a Ledger que o mundo estava vivo, mesmo que triste e destruído. E as sombras continuavam a se mover.