sexta-feira, 30 de setembro de 2011

empregada


Quando soube que seria demitida, não lavou a roupa.

No último dia de trabalho trabalhou o dia inteiro, a meia velocidade. Esfregou o mármore com desleixo e derrubou um pote de dentro do armário. Era de plástico, não quebrou, mas o arroz caiu quase todo. Sobrou um pouco. Não cozinhou.

Encheu um balde dágua e foi ao banheiro, varreu vagamente e molhou o azulejo. Em alguns cantos sobrou sujeira, pó, mas podia estar pior. Então, que seja.

Obviamente não limpou os vidros das janelas, mas teve a decência de abrir as cortinas e deixar o ar entrar. O vento atrapalhou a passagem do aspirador, então certas poeiras mudaram de casa. Na mesma casa, foram para outro cômodo.

O patrão estava fora. Ninguém falou uma palavra o dia inteiro. Exceto ela, sozinha com seu telefone.

Quando chegou na própria casa não limpou os sapatos no tapete de entrada. Fechou a geladeira com a mão gordurosa de banana. Sentou no sofá sem trocar de roupa. A blusa amarela estava manchada de vinho, tristeza e água sanitária.

Quando soube que seria demitida, não lavou a roupa.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

kindheit

Queria ter onze anos
pra me apaixonar pela primeira vez
talvez uns doze anos
doze também servia

menos que isso,
nove,
dez,
não seria prudente

com nove não se é maduro o suficiente
pra saber o que é paixão

mais que doze
já nos treze ou pouco mais
catorze,
os horríveis quinze,
chega-se já longe da infância
e a paixão não se sustenta

queria ter onze anos para
me apaixonar pela primeira vez
e ter certeza de que os adultos todos,
até mesmo os que gostam de crianças,
estão errados no que pensam saber sobre
no que pensam sobre o que não sabem

queria ter onze anos para me apaixonar pela primeira vez
olhar no céu e ver etês
e crer nas mágicas que hoje creio
mas que sei não ser direito assumir pra que todos ouçam

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

gato 34


Fui ao mercado comprar coisas que não precisava porque precisava sair de casa. No caminho uma criança ri, outra corre, sol se põe, uma freira caminha lenta subindo a rua, um filhote late, cachorro, um filhote grita, moleque.

Faço uma vênia e boanoite à velha freira. Sempre as cumprimento, não sei por que. Freiras têm cara de reverendíssimas, sempre parecem. Boa noite, irmã, Boa noite meu filho, Sua bênção, irmã, Deus te abençoe, meu filho.

No mercado um pão marcado a 1 centavo. Preço errado, claramente, mesmo assim não perco tempo e pego o pão. Nem era o que eu queria, mas sendo 1 centavo vale a pena arriscar. Vou à fila, passo as compras, dão-me a conta, Não, ei!, isso está errado, dê cá esse pão. Pronto, nada de 1 centavo, pesaram o pão direito e ele saiu mais caro. Que seja, de qualquer jeito vai pra mesa.

Na volta mais crianças pela rua, a noite já escura e a lua escondida em algum lugar. Talvez em outro sistema solar. O gato filhote que fica na frente do prédio mia pra mim. Sorrio. Ele mia. Gatos não sabem sorrir. Se esfrega nas pernas da calça e as enche de pelo. Abaixo. O gato cheira minha mão e se vai.

Meu casaco ainda cheira a ela.

domingo, 25 de setembro de 2011

se eu ganhasse 33 centavos a cada vez que ouvisse isso...


Acredito nisso cada dia menos. Antigamente eu via
uma mulher à minha frente, na fila da padaria, e pensava:
É ELA! Hoje em dia olho e penso: Pronto, a vadia vai levar
o último pão integral.

Ted Mosby, How I met your mother

- Não é problema contigo, é meu.

- Oi?

- Não que seja você, eu que tenho culpa.

- Desculpa... como?

- Estou dizendo que isso é porque eu... meu deus, como é palavra?

- Porque você não quer.
- É! É, é isso. Mas não assim, eu gosto de você. Eu...

- Não é contigo, é comigo.

- Como?

- "Não é contigo, é comigo". Essa é a fórmula. Pode dizer também "não é você, sou eu" ou "o problema não é você, sou eu", que é a forma longa daquela segunda opção.

- Isso! Quer dizer, não é assim... eu gosto de você.

- Certo, meu bem, certo, não se preocupe. Nunca pensei que ouviria um clichê desses vindo de uma austríaca, mas vá lá. Essas coisas de relacionamento não devem ter fronteiras de estado-nação. Enfim... e agora?

- Agora? Agora eu quero continuar sua amiga, não quero parar de te ver.

- Não, meu bem, e agora já decidiu onde a gente vai comer ou tá difícil?


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

três dois


Assim que entrei no táxi ela disse: "Leve-nos à casa do caralho". Claro que não disse pra mim, nem mesmo falou português, mas o motorista senhor velhinho cansado de sono entendeu. E lá fomos nós. Também não era literalmente à casa do caralho, mas logo ela falou eu percebi que era longe pra diabo. Da minha casa, fique claro.

Tudo bem, já que entrei no carro agora vamos. No meio do caminho perguntou: "Então, pra onde vais?". Não perguntou português, nem sei mesmo se perguntou, mas sei que eu respondi que ia por aí, não sei, continue seu motorista, no meio do caminho vejo onde é melhor, daí aviso e logo salto. Desço do carro.

Mas não desci. Quando dei por mim estava à porta da menina, que na verdade eram duas e não falavam português. Ou quase, porque entendiam. Quando entrei no táxi pensei "por que não?", quando desci do táxi pensei "puta merda, tô longe que só a porra".

Elas se despediram rápido e entraram no prédio. Sobramos eu e a rua deserta. Merda. Tivera eu ficado a pé e era mais perto. Mas caminhei, já que não tinha mesmo outro jeito.

No meio do caminho deixei dois euros cairem longe, em algum lugar, na mão de algum maluco sujo com um saco de pão e cara de fome. Sei lá. De repente era pra comprar pedra, mas quem sou eu pra julgar?

Dei duas voltas na praça e depois achei meu caminho. Já perto de casa, no prédio vizinho, um pouco pra cima, a lua amarela crescente sorria pra mim. Valeu a pena andar.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

strip


Estava escuro quando começaram a se despir. Ele não via um palmo à frente do nariz mas sentia na ponta dos dedos o corpo dela inteiro. Ela estava de olhos fechados e braços cruzados por sobre os seios, envergonhada. Ainda não estava pelada. Nem ele.

Ouviu um clique e sentiu que em suas mãos havia duas pontas de tecido. Sutiã, pensou ele, mas ela não disse nada. No escuro completo nada se via, então ele se conformou com a ideia do sutiã aberto e pronto, passou para a próxima etapa. Carinhou a barriga dela e desceu com as mãos aos quadris, beijou a cintura e com os dedos velozes tirou o botão de sua casa. A casa em que estavam não era dele nem dela.

Mal sabiam onde estavam. Talvez na China antiga, talvez em Mercúrio, mas estava imenso escuro pra que pudessem saber.

Não importa, ela pensou, ainda segurando os seios com os braços cruzados. Ele beijava suas coxas e aos poucos puxava a calça pra fora da cama, pra longe do quarto, jogava as roupas no quadro que havia pendurado na parede de trás do lugar.

Ela sorriu. Do sorriso veio um riso abafado, que ele ouviu. Olhou para ela esquecendo das calças por um instante e então viu, radiantes, os olhos dela a brilhar.

O quarto já não estava escuro, não totalmente. Deitada, com os olhos abertos olhando pro teto e alumiando metade do quarto ela sorria, as mãos cruzadas por sobre os seios. Ele viu que no peito trazia um sutiã preto, ainda vestido. Olhou para o quadro que balançava, notou que as roupas estavam no chão perto dele e correu até lá. Ela continuava na cama, sorrindo, rindo, com os olhos brilhando de luz olhando pro céu.

Mexeu rápido nas roupas ao chão, cueca, camisa, a blusa vermelha que ela trazia com IcoraçãoNY escrito, as meias dos dois, três meias, pensou que uma delas se havia perdido e seria bom que encontrassem antes de ir, pulseira, colar, sapatos, a calça dele, a dela não que ainda estava vestida até os joelhos, e pronto. Achou novamente o tecido que tinha estado em suas mãos, tecido de pontas do clique que ouvira, o tal sutiã.

Não era. De um jeito engraçado aquilo era venda, um pano que, pelo visto, tapava a visão da menina. Ela olhou para ele, que agora era nu e iluminado, e ainda sorria. Ele também. Vá saber, pensou, de repente era isso que ela queria. Que eu precisava. Que ela também. Tirar essa venda dos olhos pra poder enxergar bem...

Voltou para a cama, ela fechou os olhos e o quarto de novo estava no escuro.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

passo...
...passo
passo...

“passa aqui!”
é o que grito
é o que grita
ela.

passo e tomo o mundo,
o rumo,
o curso,
o rio.
passo...

passei por ruas,
vielas,
e as vi
nuas
meninas em janelas
por todo o litoral.
...passo

num mar de sal
submerso
nadando ao céu
feito verso que não pára de soar.
passo...

e ela,
menina,
pernas do mundo,
passará.


Ele dizia que os dois deviam achar o céu logo que pudessem, antes de esperar que o céu descesse ou que eles subissem ao Céu. Ela dizia que sim, que bem que achava isso, mas nunca se sabe no fim das contas se é isso que dá pra fazer.

Ele dizia que sim, era só caminhar pelo céu com o pé na terra e a cabeça em algum lugar dentro do coração, pra evitar de pensar no que quer que fosse. Ela dizia também que era ali que ela mesma pensava, com o coração na cabeça e a cabeça no coração.

Ele tinha certeza que os dois achariam o céu. Ela não tinha certeza, mas seguia sentido a ele porque, na pior das hipóteses, podiam parar no caminho e olhar pro céu lá no alto com estrelas e nuvens e flores vermelhas voando caindo de não sabe onde pousando de leve nos pés da criança na beira do mar.

Ela sorria quando sorria uma criança nas margens do caminho, ele sorria quando ela sorria e sorria também quando sorria a criança e ela não via por estar a olhar pra outro lado. Mas mesmo olhando pro lado de lá ela sorria.

E toda criança sabia que as flores caindo do céu vinham de árvores no alto das nuvens.

A gente é que esquece.

sábado, 17 de setembro de 2011

paêbirú


ouvem-se as letras caindo enquanto o som toca no som é o som de outro tempo. Há fogo folha água luz estrela um firmamento negro e a meia-lua minguante da noite de hoje é a lua nova de algum outro dia.

samba-se o passo na areia e o sol na janela balança com o vento a veneziana. O raio de sol amarelo e quente inventa o balanço do vento que vem e o vento se esquenta no sopro da areia também.

duas flores agora se brotam aos pares então já são quatro flor a brotar. Uma floresta se faz de três flores três árvores quatro riachos e cinco pardais.

O som do sol que vai longe acorda o sono daqui e se estende às costas de mim

a luz do dia nascente nascendo ao meio do dia em dia que ele se põe.

baixou

a lua brilha e mingua entre as vastas nuvens
e estrelas brilham juntas trás daqueles montes
deitado mesmo à cama, janelas fechadas,
o som do vento chia e envolve já meu sono

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

crônicas do metro


Ele sentou no metrô bem no ponto final. Dali só havia um sentido pra ir.

Esperou. A última parada demora mais que as outras, o trem se lotando aos poucos com poucas pessoas entrando. Esperou, descalçou os pés e apoiou na poltrona da frente, esticando as pernas.

Entrou uma moça, loira bonita vestida de branco e com os olhos tapados por óculos negros. De sol. Pouca gente no vagão quase ninguém ela foi e sentou bem de frente pra ele, uma poltrona além. Para trás. Na frente exata ele tinha os pés pousados, ela não sentaria aos pés dele, não seria educado.

Tirou os óculos de sol e enxugou o suor da testa. Ele viu que em volta ao nariz, onde os óculos pousam, duas marcas fundas avermelhadas tinham ficado marcadas. Os óculos passaram muito tempo ali, pensou ele, ou o nariz dela inchou, não sei.

Sorriu para ela quando ela olhou, indicou o próprio nariz com a ponta do indicador e ela percebeu o que era. Sorriu também, mei sem jeito. Alisou o nariz e pegou num espelho. Sorriu de novo pra ele, agora que vira as marcas.

Ele sorriu. O trem partia em segundos, pessoas entravam ainda, o trem partiu da estação final rumo ao único sentido possível naquela situação. Ele olhou para ela, que mexia em algo na bolsa, no colo, algo assim.

Ele deixou de olhar. Ela olhou, então. De repente. E ele notou. Ele olhou de volta, ela continuou. Os olhos se olharam, ele sorriu, ela também, dessa vez sem ninguém sorrir primeiro, antes do outro. Os dois sorriam e uma estação depois ainda se olhavam.

Ele saltou em uma estação qualquer antes dela, que foi até uma estação qualquer depois dele. Ninguém sabe pra onde, ninguém sabe quando, ninguém sabe nada.

Subindo as escadas ele pensou se a veria de novo, um dia.

Ela, no trem, tocava de leve a marca ao nariz e sorria, pensando se um dia o veria de novo.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

trinta e umésima


Há formigas fantasmas andando no meu corpo. Meu quarto tem formigas de verdade. Cozinha, se o lixo é esquecido sob a pia, não só formigas como formigões. A casa toda se coça por onde elas passam.

Depois de meditar por mais de uma hora, às vezes um pouco menos, a perna formiga. Levanta-se devagar circulando o corpo, com a mão se puxam os pés, que formiga, metade da perna dói e a outra não sente nada. Nada. Metade da perna dói e a outra só volta a existir aos poucos.

Sinto-me porco quando a mosca voa em mim. Parece que não tomo banho ou tenho qualquer coisa, talvez um pacto com o capeta, Senhor das Moscas e da Imundície das Profundezas. Mas tomo de três a mais banhos por dia, ça chuva ou faça sol. Especialmente quando faz sol.

Hoje, desde criança procuro nos cantos da casa algum doce ou ovo de páscoa ou qualquer dessas coisas que atraiam formigas. Não vejo uma bala sequer, nem pra elas nem para mim.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

tratado de muriçocologia


Há quem saiba o que é muriçoca,
carapanã,
pernilongo,
tudo tudo a mesma coisa, mas em partes diferentes
de um país.

Meu país, o brasil,
todos sabem muito bem.

Como chamará em portugal?
Talvez pernilongo também?
Talvez?
Muriçoca duvido um pouco;
carapanã, nome díndio,
duvido muito.

Vejo agora o dicionário e se chama
não, não chama,
não encontro o dicionário.

mas o mosquito muriçoca
pernilongo
que me acordou agora
antes das 6 da manhã
me tirou foi tanto sangue
que eu juro que esta é
de todo o mundo inteiro
a maior carapanã.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

e já lá se vão 30


A lua cheia é grande e nasce ao fim da minha rua. Não sei se ela alumia ou a lâmpada pública, mas bate uma luz em mim e no muro há sombra. Eis que a sombra se agita e quase me pega no susto, mas eis também que o susto bota a sombra em seu lugar.

Na janela do andar, do segundo, um gato arranha a cortina por dentro do vidro. Não sei se o gato caía caso o vidro se abrisse, não sei. O vidro está fechado e o gato arranha a cortina no alto, dependurado na contraluz.

Faço as contas de quanto falta para nunca mais faltar nada. Complicada. Muitas vírgulas na divisão.

Lê-se um livro em algum lugar, em outro lugar se faz sexo, num terceiro ainda um terreiro de umbanda batuca a canção de uma avó. Lê-se um sexo enquanto num terreiro reza-se um terço inteiro. Livra-se então dessa dó, seja lá do que for.

A lua cheia é grande e aqui já vai alta, mas lá onde me interessa a lua até já desceu.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

mexicana

- Você viaja para reviver seu passado? – era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser reformulada da seguinte maneira: - Você viaja para reencontrar o seu futuro?

E a resposta de Marco:
- Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.

(Italo Calvino, As cidades Invisíveis)

Morde o pêssego e pensa na menina. Ela é de outra terra, de longe, ele também. Mas os dois da mesma terra ficam cada qual num canto. Os dois da mesma terra em terras longe.

Quando a conheceu estava de partida. Ele. Ela não, ela ficaria. Mas ficaria num ponto tão distante do destino quanto da terra natal. Dele. Entende? Ele a conheceu quando partia de A a B, enquanto ela permanecia. Em C.

Era como se um estivesse no Brasil e a outra, sei lá, Japão. Longe.

Mas ambos da mesma terra, eram.

E se iam reconhecendo um pouco, de pouco em pouco, enquanto lembravam do que ficara nas infâncias do pensamento. A cada estação de trem, a cada metrô, de ponto a ponto da linha ferroviária do mundo todo os dois se lembravam, como quem acha dois euros no troco da máquina de café.

Ambos os dois contavam histórias, mas ele calava mais. Ela falava, chutava areia na praia ou no deserto do Egito antigo. Ele só lia livros, olhava as ruas e caminhava. Ela falava, mas também nem sempre.

Tinham uma coisa com livros antigos, sentimentos antigos e com velhos espíritos. Mas nenhum dos dois sabia bem o que tinham.

Não sabiam, mas falavam do mesmo jeito. A cada palavra nova a cada história um pedaço dela saía de trás da cortina azul. Ele não tinha cortina mas parecia estar sempre de costas, então cada frase nova girava-o um pouco mais. Ela descortinando, ele encarando de frente o futuro de sabe deus quê.

independência ou 29


Almoço. Baião de dois com queijo típico português. Meu grito do Ipiranga nas beiradas de Lisboa.

Minha avó deu a meu pai um colar de ouro, de estrela, benzido em pai de santo. Num exu, bem da verdade. Isso faz tempo. Hoje o colar é meu, meu pai me deu antes de eu seguir. Era Exu Seu Tiriri, o exu, dos primeiros amigos que tive que eu lembro. Ele e meia dúzia de crianças mortas. Ou desencarnadas, como queiram.

Hoje ando por aqui com a estrela amarrada no peito. Umbanda andando em território português. Típico, eu sei, feito o queijo. Além disso tem ciganos, indianos, a comunidade de África e metade da China aqui. Andando pela rua de noite, pegando vielas sem muito sentido, cai-se em bairros mais ou menos proscritos por serem migrantes. Imigrantes, de fora. As casas antigas malacabadas, fachadas descascando em torno da janela de onde sai um pai gritando ao filho que de bicicleta vai pra longe algo como "volte aqui", mas em hutu. Não sei se era "volte aqui", mas devia ser. O menino logo voltou.

Lisboa à noite é sem turistas, ao menos pela semana e ao menos fora das zonas turísticas de festa à noite. Cidade de imigrantes que ocupam vielas velhas onde nasceu o fado, Pessoa, onde morreu Amália e onde ainda talvez um dia chegue Dom Sebastião. O Desejado.

Independência ou morte, certa vez disse um português. Gritou à beira rio quando voltava da cidade onde Nasci. Santos, vocês sabem. Hoje, em terra dele, ouço pela janela pouco mais que um ou dois carros, vizinha gritando qualquer coisa que não entendo e o barulho imaginário do rio lá do outro lado.

Supõe-se que hoje eu sou livre.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

vigésima oitava


A senhora na fila reclama da fila. "Como podem demorar tanto para entregar um papel, como podem?". Na vez dela, demora. A senhora é à minha frente, então espero. "Não pode esta foto com óculos escuros", diz a atendente. "Ah, pode! Ah, pode!" e saca a senhora de dentro da bolsa a carteira de identidade, motorista ou sei-lá-quê. Uns anos mais jovem, papel amarelado, óculos escuros. "Viu? Trate de aceitar". A moça aceita.

E diz a menina médica jovem ao velho, no meio da rua, "O senhor já fez exames de audição? Pois estamos aqui nesta clínica fazendo de graça, pois sim? Então, já fez os exames?". E o velho, "Hein?". "Exames de audição", ela diz, "estou lhe oferecendo". "Ah não, não, eu ouço muito bem".

Existe uma rampa na muralha do castelo. Ela sobe um pouco até o alto do arco de entrada e vira à direita. À esquerda também prossegue, mas olhando da bifurcação logo se vê que à esquerda o caminho acaba logo. Quinze passos e uma cerca. Ou menos. Toda gente segue ao arco, sobe no muro e tira as fotos do Tejo lá embaixo, escuro ou claro depende do sol. Virei à esquerda. Quinze passos, ou menos, parei na grade e vi, pra além dela, dois pavões. Enormes. Ciscando, andando, ao sol, claros, quietos, azuis e verdes e tudo mais, a se coçar com o bico e a comer as ervas do recinto.

Recinto rimava, aqui.

À direita, as pessoas tiram fotos. Ninguém vê os pavões.