terça-feira, 30 de agosto de 2011

vinte e sete


Cedo a burocracia me barra. Burro, insisto. Nada. Tudo bem, não sou dos que morrem por isso. Meu atestado de óbito será só mais outro papel.

Metro. Aqui não é metrô. É metro. Medida de comprimento de uma cidade nem tão comprida. Cedo, caminho. Não paro de andar desde que cheguei, a cidade é o que os pés do homem andam, sem mais nem menos. Afora isso nada existe. Minha cidade são meus caminhos.

Do litoral do Brasil até o interior, depois outro litoral depois outro interior, Europa já, depois outro litoral, depois outro interior depois mais um litoral. Europa de novo agora. Como estações de metro uma após a outra, todas linhas do mesmo mapa. O mundo é uma zona urbana mesmo que em meio ao campo. Dos litorais aos interiores tudo que resta é paz. Meu corpo são dois meus pés.

Na pausa para um café sento à sombra que, creio eu, vai me acompanhar. No pátio da lanchonete, em minha universidade, um lago artificial brota peixes bambus e u'a única flor de lótus. Lótus. Deus é um piadista. Ou Buda.

Volto de lá e ando. Ando. Com uma mala nas costas eu ando. E subo, desço, e chego. Largo a mala naquela que será, quase já, minha casa. Depois volto. E ando.

Quando janto, defronte a um Buda de madeira, esqueço da reverência. Só lembro ao fim do arroz, quase no fim do prato. O restaurante é escuro e a música triste parece me entristecer.

Mas essa tristeza que sinto é cansaço.

domingo, 28 de agosto de 2011

cena 26


É verão só sob o sol. Na sombra faz um frio que me enregela a alma. A cerveja gelada acompanha o tempo. Estou bebendo meus sentimentos.

Penso te ver caminhando na marina. Na mesa, minha frente, um prato de caldo de cenoura esfria com o clima. Andando pela marina, afinal, tu não está. Teus pés agora devem estar do outro lado do oceano.

Passam pela mesa um pai e sua filhinha. Quatro, cinco vezes. Suponho que serão seis, em breve. Pronto! Passam seis vezes, em pouco a pouco correndo de um lado ao outro, não sei se apostando corrida ou pega-pega.

Como se chamará pega-pega em havaiano? E em holandês? Ontem aprendi a conjugar ser em croata.

Meu prato está frio. Na escada, atrás de mim, vem sentar uma bela portuguesa. As moças de Portugal têm cara de portuguesas, é fácil identificar. Acho bom: se não tivessem elas, quem teria? As indianas?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

cena 25, querido diário


Quando o sol nasce, do outro lado do avião, no mar lá debaixo vejo algo a brilhar. Com a luz do sol, no mar, algo vermelho acena. Um navio, talvez, ou um pedaço de sol que se perdeu.

Lisboa é uma cidade de vielas decadentes e avenidas reformadas. Nas vielas vejo alguma porta aberta e um velhinho português a ler jornal.

Quando o caminho em que ando acaba, começa o rio Tejo. Deixo os chinelos depois de uns degraus e afundo meus pés nessa água. Um tipo de limo ancestral ameaça que eu escorregue. Daqui partiram navios que inventaram o Brasil. Agora eu inventario.

Ouço mais de cinquenta idiomas falados, em todos os lados tem um grupo a mais. É verão, Portugal é quente e os norte-europeus descem pra cá.

No aeroporto chegou, atrás de mim, um avião de africanos. Com roupas típicas coloridas e as línguas, um cheiro de incenso acompanhou o desembarque.

Um sufi passou por mim defronte ao Teatro Nacional. Turbante e barba longa, um sufi.

A maré sobe. Não sei os nomes dos lugares, mas a água ainda molha.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

cena 24 de agosto


chorar é um evento solitário

Sento num descampado para escrever. É a mureta do canal, canal 2, pés na calçada olhando a rua. Às costas, a água suja do canal corre pro mar. À minha direita árvores espaçadas fazem sombra na calçada. À esquerda também. Só exatamente em minha frente é que não há nenhuma planta. Os carros passam e eu escrevo. Isto.

Na janela de um shopping alto, eu pelo lado de dentro, um suco na minha mesa, olho os prédios do lado de lá da avenida. O prédio que eu vejo me olhando é uma casa baixinha, um sobrado, uma casa baixinha velha mas reformada, casa onde havia um pronto-socorro. Quando criança, muitas e muitas vezes fui doente praquela casa, e o doutor do segundo andar me fazia esperar na sala. Criança, olhando pela janela, via o shopping alto que na época não existia. Ali havia um cinema.

Caminho pela praia e molho os pés na água, depois saio dela. A linha que sigo, tortuosa, passa por cima de patas de pássaros. Pegadas de asas estão pelo chão da praia. Sem perceber muito bem, pisando por sobre elas eu meio que alço voo.

Vejo um posto de gasolina que já era um posto de gasolina quando fui adolescente. Lembro de uma vez que, saído da escola, eu e uns amigos andamos até ali. Sem motivo aparente. Na esquina continuamos a conversar, a falar, até que já fosse tarde o suficiente para eu levar uma bronca quando chegasse em casa. Tudo bem. Um amigo ali, naquela tarde, me deu as coordenadas matemáticas do famigerado ponto G. Vocês ficariam surpresos de saber o quanto ele existe...

Numa das últimas ruas, passo defronte a uma casa antiga. Casa em que eu ia criança, casa da vó de uns amigos. Faz tempo. A casa está igual, paredes de azulejos na garagem aberta na entrada. Na casa da vó de meus amigos o portão está enferrujado. Na de minha vó também.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

não sei se esse nó
que sinto no estômago
é ansiedade ou cachaça

não paro de pensar
que não paro de
pensar
que não paro de pensar

meu coração bate mais rápido
mas deve ter sido por eu
ter batido
o dedão no sofá

pensei que estivesse triste
mas o que eu sentia
era frio

sábado, 20 de agosto de 2011


tempo é movimento, ao correr.
descanso, letargia: eternidade.
não há alternativas, na verdade,
que leve qualquer louco a não morrer.

domingo, 14 de agosto de 2011

23, dia dos pais


Pedalando pela praia, desacelero. A menina que vai à frente pedala devagar, insegura, tentando tirar uma das mãos do guidão. É criança. O pai vai na frente e a deixa por conta própria, mas não pedala rápido pra que não se distancie. A menina treme, faz pequenos ziguezagues, treme, por fim grita com a mão pro alto. Uma delas, a direita... não, não, a esquerda! "Pai! Pai! Tirei uma das mãos!". Depois, mais baixo, falando pra si própria, ri. "Tirei uma das mãos... que fantástico!".

Sento ao pôr-do-sol olhando os morros lá distantes. Estou sobre pedras no canto da praia, no outro canto o sol avermelha. Passa um sujeito e desce pra areia. Um cigano, penso eu, de colete sacola e bolsa barbicha e cabelo comprido. Volto a olhar o céu antes que o sol se vá. No fim das pedras o cigano assenta, com o pé na areia. O sol vai dormir e o cigano acende um cachimbo de madeira.

Crianças correm da areia pro mar, atrás do pai pescador que parou o barco no raso. Crianças sorriem pra água que cai, pro homem do algodão-doce, pra árvore, pro coco verde gelado a 3 dinheiros, muito caro. Crianças passam na noite de lua cheia com vento quente, vento noroeste a gente chama, que traz chuva e me lembra infância.

No teatro me admiro. De toda a beleza coreografada, ensaiada, de textos prontos e marcas dadas, o caminho das pétalas que caem do alto se faz por acaso. Tampouco ensaiada é a pétala que agarra na trança da moça, da bailarina que sai. Tampouco meu choro.

O espetáculo acaba e o choro prossegue.

De repente passa uma criança...

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*a foto é do tal espetáculo: http://www.donkashow.com/donka.html

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

dois patinhos na lagoa


- Ô paaaaai, posso lavar o cabelo? Ô paaaaaaaaaai...

A criança grita do chuveiro e a voz vem pelo poço do elevador. Morar em apartamento é viver, de um jeito ou de outro, a vida de todos em volta. Alguém bate a porta, alguém bate à porta, um velho morre no andar de cima, o vizinho chora, o cachorro late e a mulher se despede antes de ir embora.

Pisando pra fora do prédio ela muda de bloco, dali em diante sua vida se isola, não é mais pedaço da história do prédio. Não está mais ligada ao homem que morre e o homem sem teto, que dorme encostado na escada da praça, não é nem um nada. Não é nada pra ela. A mulher que saiu do edifício segue sozinha uma história sozinha.

Deitado na escada, na praça, o homem afasta umas pombas e um grilo. Não vive num prédio, não tem seus vizinho num bando de gente: vez disso, ele é consciente da morte do esquilo, das asas batendo de uma andorinha, da grama que nasce, das flores que brotam, da quina da escada que o fode nas costas. Viver na praça é morar, de uma forma ou de outra, no meio da vida de todos em volta.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

(021)


Um funcionário atrás do vidro troca o cartaz que anuncia: a partir de sexta-feira espetáculo inicia no teatro São João.

O caminho de volta à rodoviária é mais breve que o de ida. Meus pés já sabem por onde ir, mas do avesso. Logo chego.

À minha esquerda o mar se agita. À frente, arrebita a bunda de uma bonita moça, ao lado do namorado. Talvez marido. Tatuado e com aparência presidiária. A bunda balança livre.

Uma senhora arrasta a sacola pela calçada. Cansada, parece pedir um vintém. O homem que se aproxima é generoso: cruzando o olhar com a velha na certa dará uma moeda. Um passo antes da idosa, entretanto, seus olhos se enchem de encanto ao cruzar com o olhar de uma moça, do outro lado da rua. A velha se deita com fome, e dorme.

Vejo a rodoviária ao longe. As luzes piscam. Cheiro de bar e urina no chão. Passo. Estou no caminho. O destino é a estrada. Indo embora me sinto em casa.

sábado, 6 de agosto de 2011

vinte ver


Rio de Janeiro. Estado. Peço café. "Açúcar? Adoçante?", "Nada, obrigado". "Nada? Como você consegue?". Não sei. Sou de São Paulo.

Estado.

Andando pela praia primeiro dia à noite, primeira noite, no alto do monte vejo um fogo incendiar. Lá longe. Espero que apague.

Meu chinelo arrebenta e sigo, com pé no chão que fica imundo. A sujeira do mundo inteiro se estende pra que eu pise. A sujeira do mundo condensa em meus pés.

À beira da calçada um cão espera. Deitado, olha para cima de um morro longe, do lado de lá da avenida. Outro cachorro deitado, no mato, espera. No alto do morro. E olha o primeiro cachorro. Estão a esperar que a altura se abaixe.

Tremula no caminho um edifício em construção. A rede que protege da queda de entulhos dança ao vento. Tremula o edifício no caminho, e nada mais preciso.

Mas no tremular do mar, ao lado de onde estou, emerge a tartaruga. Breve, e logo afunda.