sábado, 30 de julho de 2011

aos dezenove ele não vai lembrar


Como estou pedalando, perco o final da frase. É uma mensagem escrita no chão, no meio da rua, em frente a um prédio.

Luana,
me perdoa. Eu te amo muito,
não consigo viver sem você.
César

Não-consigo-viver-sem-você-César é o final que imagino. Não sei se seu nome é César. Nem lembro, aliás, se o dela é Luana. No meio do asfalto o amor se estira.

Faz mais calor hoje que nos últimos meses. O sol coloca um filtro azul na realidade. Sinto que a praia é a cena de um filme aquecido. Nova geração de processadores de imagem.

Sentado olhando pro mar olhando pro livro e lendo, voltemeia passa um menino correndo. Pequeno, dois anos, da direita pra esquerda. Passa um menino correndo desde onde seus pais se encontram. Um dos dois segue atrás, chama, pega o menino no braço e leva de volta. Volto a ler. Pouco depois - um parágrafo - volta o menino a correr e agora é o outro que busca. Menino pequeno falando pras pombas qualquer coisa que eu não entendo.

Que pena. Deve ser mais importante que meu livro ou que o céu quente de hoje.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

dezoito voa


algo se move sob meus pés
que estão deitados sobre o sofá.

mancha nos olhos
a mancha se move
sob meus pés
a mosca

se move estranha
sem asas batendo
e eu me recolho sem bater os pés

- diz-se que, afinal,
qualquer mover pés causa um abissal
furacão
na terra das mariposas -

a mosca resiste ao vento
do pano de prato que faço
pra que ela voe dali

a mosca resiste ao tremendo
terremoto
que, penso eu,
é o arrastar do sofá

a mosca resiste
e sopro
gentilmente
pra ver se

ela cai

e ainda com asas guardadas
a mosca vai gentilmente
como quem não quer nada
andando na sala de estar.

dezessete cm³


Não enxergo mais um palmo à frente do nariz. Não, ao menos, quando o palmo está a uma quadra de distância.

Duas quadras, no entanto, é quão longe desta casa fica o estádio de futebol. Jogo hoje, jogo grande. Vários gols. Eu na sala ouço os gritos da torcida entrando na janela enquanto, trás da porta, vêm gritos dos vizinhos com a televisão ligada.

Há delay. Entre um lance e a transmissão, alguns segundos. Gol!, gritam no estádio. Meu som continua tocando, minha leitura continua lendo... gol!, grita o vizinho. A tv dele faz barulho.

Se eu ouço o delay, eles também. Mas, mesmo ouvindo, o grito de gol vindo do estádio não antecipa o gol dos vizinhos. Emoções já esperadas emocionam do mesmo jeito, ao que parece.

Na cozinha a torneira solta pouca água, que cai em padrões entrelaçados. Há textura na torneira. Ao longo do fio de água as cores não se misturam: a curtos intervalos há azul e há vermelho. O filamento está listrado.

a resposta está na pergunta

O demônio dissera "não olhe para trás". Feu caminhava por horas ouvindo ecoar o conselho, ainda, em algum lugar entre o ouvido e as costas. Nem olhara o demônio falar. Não olhe para trás significa não olhe para trás. E ele não olhava.

O caminho era tortuoso, quente, voltemeia frio, quase sempre desesperador. De vez em quando, entretanto, avistava uns diabos de folga, sentados à sombra fumando um cigarro.

Escorregou numa ponte estreita feito espada. Viu um dedo do pé cair, cortado, e se perder na escuridão do precipício. "Porra!", pensou, mas não falou nada. Aproveitou a queda para engatinhar pelo resto da ponte, cortando as mãos e os joelhos. Pelo menos estava inteiro quando chegou. Sem um dedo mas inteiro.

Mantinha a cabeça voltada para a frente mesmo nos momentos em que algo lhe agarrava os calcanhares. "Não olhe para trás", afinal.

Vislumbrou ao longe a claridade. Um traço fino de luz do dia atravessava despenhadeiros, pedras, névoa, trevas, morcegos, sangue, dor, gritos, copas de árvores retorcidas e uma cortina de seda azul. Sorriu. Parecia a saída.

E era. Saindo da cratera deu dois passos até estar banhado pelo sol. Manteve os olhos fixos no horizonte, sentindo o cheiro do dia que passava pelas nuvens já distantes. Carina chegou logo após e parou a seu lado, vinda também lá do fundo do poço.

- Oi, Feu! Obrigada por vir me buscar.

Deram as mãos e saíram de perto daquele inferno.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

experimento kinsey

quando joão soube que andrea
moça bonita
transava com os homens e então publicava
contando os detalhes e os classificando
ficou cheio de si.

joão era bom, muito bom,
o mestre da transa era joão

então ele foi e propôs
a andrea
que fizessem assim:

"transamos,
você publica,
e se eu for o melhor do mundo,
como sou
e sei que
sou,
não ponha pseudônimo.
Meu nome em maiúsculas basta"

ela publicou, dias depois:

"anselmo dizia ser bom..."

sábado, 23 de julho de 2011

cinco jackson sem pandeiro


a primeira vez que ouvi
melancolia
já faz muito tempo atrás.

foi num filme que eu via
sobre os jacksons five

eles cinco eram pequenos
eu era 'inda menor
e ouvir melancolia
cantada pelo moleque
me fez pensar
melancia

que fazia mais sentido
do que a tal melancolia.

de modo que eu criança
quando sentia tristeza
do tipo tristeza boba
sem motivo ou aparência
achava que melancólico
não ia me cair bem.

eu ficava melancélico

sexta-feira, 22 de julho de 2011

cena 16, de volta


No caminho entre o bar e o voltar ao palco ela me olhava tanto, e eu olhava tanto, que não ter feito nada foi um desperdício.

O cantor chamava as gentes a dançar. No meio da pista, começo da festa, uma criança e um aleijado atendiam o chamado do homem.

No caminho de volta caminho leve, os passos rápidos e a mente cheia. Sinto os pulmões amarrados. Do lado de fora de minha cabeça o mundo segue em perfeita paz. Os carros estacionados não sentem nada demais no fim de noite que chega.

Estou prestes a ir embora e meu cabelo cresce de novo.