sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

meu altar
agora é um formigueiro. a entranha da madeira dá guarida
às formiguinhas. milhões de muriçocas esvoaçam
pelos ares, o vento agita as plantas e os palmares.
no muro que separa minha vila da vizinha,
por muito tempo houve uma passagem, um portão.
agora não. o muro foi tapado e a passagem, muro novo, destoa
do antigo só um pouco. outro dia, indo à praia, salvando o sol ardente
na carcaça, eu vi um lagartinho escalar o novo muro.
ali, onde antes se podia atravessar, agora é escada.
lagarto indo ao céu é nosso anjo, e sob o meu altar, no entretanto,
formigas, budas, santos vão morando.


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Precisamos falhar sobre isso

Nestes tempos de vida social e democracia fragilizadas, se é que existentes, precisamos falar do Buda. Sim, do Buda, mas não o chinês gordinho sentado sobre moedas - esse é um outro tipo de buda, e alguns budistas nem gostam de dizê-lo buda. Enfim... - Temos que falar sobre o Buda e sua realização mais que óbvia - desculpa, Buda, mas fica óbvio depois que a gente aprende - sobre os três venenos: ignorância, apego e ódio. Poderíamos traduzir por outros termos, também: em vez de ódio, raiva. Mas fiquemos com ódio.

Digo, não fiquemos com ódio. A opção tradutória, entretanto, basta. Tem-se falado muito muito muito em ódio - tem-se falado em ódio de uns e de outros, e de formas odiosas, e de formas raivosas mesmo. "Odeio aquele que odeia! Estou do lado certo da história, por outro lado. Posso odiar à vontade."

O Buda diria, e foi isso que ele disse, mais ou menos, a crer nos ensinamentos que a tradição vem passando há mais de dois milênios; diria o Buda que o ódio à ignorância leva, a ignorância ao apego leva, o apego ao ódio leva e assim sucessivamente. Diria também Yoda.

[os três venenos se retroalimentando, no centro de um grande quadro cosmológico budista sobre o ciclo da vida]
Agora vejamos: ódio, apego, ignorância; ignorância, apego, ódio. Cadeias de causalidades, estados mentais, disposições e predisposições do corpo e da ação, da fala, da mente, dos atos, da visão. Porque através desses venenos, diria o Buda, vemos o mundo e agimos nele, ou não agimos, mas ainda o vemos e o classificamos: ódio, ignorância, apego. "Estou do lado certo da história, entretanto, então não há problema."

Exceto, claro, que o ódio, a ignorância e o apego, só pra citar três venenos, são um problema em si.

Longe de mim oferecer soluções - perdão, não tenho a menor capacidade de oferecê-las. Longe de mim oferecer soluções e dizer que não vivo também entre ódios, ignorâncias e apegos. Longe de mim. Mas, de algum modo, mesmo minimamente, mesmo pouco, mesmo às vezes, é bom saber-se envenenado. Porque, sabe como é, como diria o Buda e a democracia direta, cada um saiba de si e, sabendo um tanto, ajude a tocar o barco em que todos, juntos, seguem navegando. Querendo ou não.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

querido diálogo I

- É preciso entender o ritmo das águas-vivas - ele dizia - e saber nadar no meio delas.

- Como se fosse possível.

Ergueu os olhos para a descrente, sorrindo um pouco.

- Por que eu mentiria?

- E eu sei lá? Talvez pra me convencer.

- Te convencer de quê?

- De que é preciso entender o ritmo das águas-vivas, saber nadar no meio delas, em vez de ficar na areia segura e seca.

Baixou os olhos, sorrindo um pouco. Ela já cria.