quarta-feira, 27 de junho de 2018

Mar de Viração: crônicas de uma ficção, parte II

Em “O Naufrágio do Aqueronte”, primeira novela de “Mar de Viração”, a convalescença é um personagem. Enquanto a leitura singra o mar atrás de futuros, em alguma cabine alguém convalesce, ouvindo música para os ouvidos e palavras de uma criança para o coração. Margarida, a menina que abre o Naufrágio, vai pouco a pouco ajudando a fechar as feridas da escrita.

Essa história foi gestada em um momento de quebra, e talvez pela quebra ela tenha gerado saúde. Ou tentativas de saúde, máximo que qualquer criação humana permite. Poucos anos antes eu morava além-mar, e minha volta ao Brasil trouxe junto uma volta a realidades que andavam distantes: velhice, adoecimento, uma avó aos poucos definhando, o barco tendo que seguir apesar disso, a família tendo que se entender justo por isso.

Não admira que Daniela Delias tenha escolhido o início do Naufrágio como uma das epígrafes de seu “Nunca estivemos em Ítaca” (Editora Patuá, 2015), livro-síntese de poemas em que estar ou não estar são estágios relativos. São passos – e entendimentos – da jornada.

Epígrafe em "Nunca estivemos em Ítaca", de Daniela Delias (Patuá, 2015)

O começo de “Mar de Viração”, assim, foi dado ao mundo antes mesmo de agora. E, pensando bem, graças a todos os deuses foi assim: desde há muito eu duvidava – e talvez duvide um tanto – do processo de publicar efetivamente uma história, de fazer a escrita, que às vezes chamamos literatura, circular. Mas publicar também é uma espécie de tradução, mediação, criação de pontes entre mundos possíveis – vistos, vividos, inventados, varia.

Aprendi isso antes mesmo de publicar, aliás, com pelo menos dois grandes nomes da literatura e da tradução deste país ao qual voltava no Naufrágio, e a quem sou eternamente grato pela ternura e amizade. Marcia Heloisa, minha preceptora nos caminhos da tradução – a quem devo inclusive uma das profissões a que me dedico – dizia desde nosso princípio: permaneça escrevendo, continue seguindo, vá fazendo o texto em forma de dom, de doação, de Dana (como chamamos a entrega no budismo, a caridade, a generosidade irrestrita). Siga seguindo a vida e, a propósito, como dizia um grande livro que Marcia traduziu, “NÃO ENTRE EM PÂNICO!”

Alberto Lins Caldas, poeta gigantesco, certa vez me disse quase o mesmo: você (eu, no caso) é de escrever histórias. De contá-las. Deixe que as editoras editem, que os circuladores circulem, que o caminho se encaminhe de carregá-las. Não sei propriamente se sou, mas ainda assim continuo escrevendo – tenho continuado, possivelmente continuarei. Escrevendo, traduzindo, ouvindo o som das palavras todas, até das que não chegam.

É uma espécie de fé, essa existência.

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Mar de Viração será publicado no segundo semestre de 2018 pela Editora Moinhos. Aproveitem o ensejo para acompanhá-la nas redes sociais:

https://editoramoinhos.com.br/

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Mar de Viração: crônicas de uma ficção, parte I


Agora que teremos Mar de Viração publicado pela Editora Moinhos, ao que tudo indica antes de dezembro de 2018, pensei poder falar um pouco desse livro. Pra mim mesmo, ao menos, se as crônicas dessa escrita não interessarem a mais ninguém.
De partida, defina-se o que é o Mar: três conjuntos de histórias, escritas em momentos diferentes, mas na sequência de meses entre fim de 2013 e fim de 2014. “Naufrágio do Aqueronte”, “terra húmyda” e “Santos'agrados” são seus nomes.

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Foto: Thomas Kodaky
O Naufrágio foi inicialmente publicado como folhetim, e embora possa ser conto eu a considero uma novela. Mas talvez seja um romance em forma de bonsai. Não sei, deixo aos críticos e teóricos literários do hipotético futuro, pois eu mesmo já larguei minhas credenciais de teórico há algum tempo.
Naufrágio do Aqueronte é uma história que contém outras histórias dentro, mas poucas, pinceladas, contadas por personagens nos entreatos da grande história, desse naufrágio. A primeira cena é Margarida, uma menina, olhando o molhe e as águas molhando suas pedras, antes de embarcar no navio. E é no navio que se passa praticamente toda a história. Afinal, se naufrágio...
Em tempo: Daniela Delias, poetíssima, usou o começo do Naufrágio como uma das epígrafes de seu ótimo “Nunca Estivemos em Ítaca”, saído há alguns anos pela Editora Patuá.

Já terra húmyda nunca foi publicada, e o pouco que se sabe desse livro, isso sim uma novela, mas também contação de estórias, apareceu numa nota de jornal. Em 2013, fim de ano, o pernambucano Jornal do Commercio pediu a escritores que comentassem o ano literário, em retrospectiva. Micheliny Verunschk, que dispensa apresentações, assim apresentou a história: “Acompanhei, recentemente, a escrita vertiginosa da novela "terra húmyda", de Leandro Durazzo, autor radicado em Santos, SP, e ainda inédito em livro. Sem dúvida, uma das melhores coisas que li nos últimos tempos.”
Em 2013 eu passava alguns meses em Santos, terra natal. Dali “terra húmyda”, portanto: novela que conta de andanças, casas, matas, buscas e quebras – de expectativas, de esperanças, mas também de ilusões. E, vejam, se há algo de que me convenço é isto: ilusões quebradas são mais saudáveis que quaisquer outras.

Santos'agrados começa pelo título, embora o título tenha surgido apenas depois dos solilóquios escritos: é passagem rapidíssima de um texto enorme, “Os morcegos estão comendo os mamãos maduros”, do experimental Gramiro de Matos (ou Gramirão, ão, ão). Nele – Santos'agrados, não Os morcegos... – ouvimos vozes. Três personagens velhos sábios cansados velhos, um pouco santificados, bastante não, contam histórias e soliloquam. Um vendedor de peixes, um vendedor de mate, um santo canonizado. Não são as histórias que importam, nos solilóquios, embora cada fragmento de conto seja um romance inteiro, até onde sabemos. O que importa mesmo são as vozes, a audiência, a escuta e sobretudo o silêncio que permeia tudo.

Amanhã, talvez depois, talvez jamais, seguiremos nestas crônicas sobre o processo que é Mar de Viração. Feito onda, a ir e vir, bater e rebater, coar e ecoar.


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