Minha mãe certa vez disse que eu tinha medo de perder. Perder coisas, acho, ou pessoas. Foi uma pergunta, na verdade, o que ela fez: você tem medo de perder?, ou algo assim.
Não sei. Só sei que pensei nisso enquanto jogava fora o último gole da lata de cerveja. Tenho dessas coisas: praticamente nunca consigo tomar o último gole da lata. É como se eu oferecesse pro santo, mas ao contrário. Em vez do primeiro, o último trago. Acho que o santo não se importa.
Voltando da rodoviária tomo chuva e uma cerveja. Estou em paz, tranquilo, mas cada gota que cai em meu rosto derruba um pouco de alguma coisa. Não é como se eu estivesse triste, nem blues, nem nada. É como se eu estivesse nada, mas não tanto. Nada exagerado, por certo.
Amanhã parto de novo, como sempre, pra algum outro lugar. Quantas estradas deve o homem caminhar, quantos mares o pássaro voar, 42, you know. I'm tired, de fato. Cada mulher que vai leva consigo a marca do meu fracasso.
Estou em paz, tranquilo, o mundo continua a girar e os homens a andar pela estrada anoitecida.
Lá fora chove e faz frio lá fora. Hoje contam dezessete dias desde que cheguei. Faz frio lá fora e, antes de chover, pondero de sair.
Estar tão longe e trancado em casa não faz lá muito sentido, eu me digo. Então pondero. Mas faz frio lá fora e, enquanto penso, o céu resolve por-me bem no meu lugar. Lá fora chove e eu fico aqui.
Mas não dura de todo muito, porque bem logo eu ouco vindo um falar continuo, de altofalante, falando chino. Nao sei que é... pode ser desde circo até vendedor de cinto ou peixeiro taiwanês. Continuo em casa lendo e a chuva para.
Dai sei - porque alguém me fala - que a voz la fora é marionete. Teatro de marionete. Do lado de fora de um templo taoista.
Caminho.
Assisto escondido atras de uma esquina ao palco mambembe, verde fluorescente, dragões desenhados, florescentes, luminosos, dor nos olhos, teatro de fantoches. Não faço ideia sobre o que falam, naturalmente.
Depois me descobrem ali oculto. Aparecem do meu lado tres velhinhos taiwaneses, taoistas e cansados, sorriem um pouco e apontam pro meio do toldo que fica de frente pro palco. Eu não tinha visto a plateia, até então, porque não queria surgir ali de repente, virando da parede com minha cara ocidental.
A plateia era os três velhinhos. O palco que eu via estava virado de frente pro templo ou pra casa de alguém que parece um templo - não sei, sinceramente: aqui todo canto tem templos ou casas que parecem templos ou lojas de conveniencia, todo canto. Entre a porta do templo e o palco um toldo cobria um banquete. Incensos queimavam enquanto um porco gigante abatido e estripado descongelava ali perto, um porco gigante provável do mato, provável selvagem, gigante tamanho meu amigo Dines.
E um monte de camarões e um monte de pães e coisas miudas que nao sei o que e mais coisas e coisas e os fantoches falavam tudo com cores e gente chegando e
um dos velhinhos na ponta da mesa, perto do palco, ao lado do incenso, levanta uma garrafa e faz reverências, garrafa de cachaça, tenho quase certeza, e serve três doses na beira do altar. Ou mesa de jantar. Não sei.
Sinto minha energia indo embora. O porco gigante atrás de mim está morto demais pra me dar alento. Os olhos esbugalhados dos camaroes me olham sem me acusar. Passarinhos presos cantam na gaiola.
Quando todos comecam a descarregar o caminhão recém-chegado, tirando de lá de dentro instrumentos pra ritual, pra festa ou sei lá o que, aproveito e venho embora. ¨Obrigado, obrigado, tenho que ir¨, esboco em chines. Sei lá se falei direito. So sei foi que vazei.
No caminho de volta comeco a cantar um ponto de umbanda, sem nem pensar sobre isso. Eles com as coisas deles, eu com as coisas minhas.