sábado, 28 de maio de 2011

sétima cena banalíssima

Toca o interfone, a irmã atende. Não é ninguém. Continuo na sala ao som tocando, martelo agalopado. Escrevo um texto sobre o zen e o imaginal. Toca a campainha. "Quem é?" e a irmã responde, lá de dentro, "Não era ninguém, ora". Mas alguém está à porta, alguém tocou. Vou lá e abro. Num passo à frente, quase dentro da casa, uma menina de roupa de escola em pleno sábado olha pra mim, olha pro teto, olha pra porta, com uma cartolina gigante dobrada nas mãos. "É, oi... é... ahn... AH! Desculpa, desculpa, desculpa... desculpa". "Desculpo", eu falo.

E ela sai miúda, subindo as escadas dizendo "É no quarto andar, é no quarto andar".

quem trouxe você fui eu...


Que sensação estranha é se frustrar
após dez anos de tranquilidade.

Li Tao Ming, mandarim, século VIII

Mal acabara de sair da casa, resolvi voltar. Deixei meu ônibus passar batido pelo ponto e andei, na chuva, de volta ao prédio em que estava. No caminho, ridículo, fui pensando no que dizer ao entrar de novo, depois de ter dito que ia embora.

A chave na mão serviria para mentir “Ah, esqueci a chave em algum lugar, só notei depois”. “O ônibus demorou demais, resolvi ficar um pouco e ir daqui mais tarde, só” também funcionaria. Sem contar com o improviso ou o silêncio, que muito bem fariam o favor de me ajudar. Ora, apenas voltei, qual o problema?

Lá estavam a moça e o dono do apartamento, dormindo jogados quando saímos. A moça. Era por ela que eu voltava, depois de ter ido embora semi-covardemente. Notem: a noite começara por ela, por causa dela, só por isso. Mesmo. E ela foi comigo, no fim das contas, para o fim da noite na casa de alguém. Lá, entretanto, não ficara comigo, mesmo tendo ficado... não ficara, de fato, e não pude deixar de notar que, talvez, mesmo ali ela tivesse já ido embora.

Então, quando fui, pensei que seria justo, no mínimo, deixar a menina dormindo e sumir sem me preocupar. Ela não dera mesmo atenção, não se importara. Ora, ela mal me notara, depois do começo, e foi toda derretimento para o hippie violeiro que chegara lá depois.

Ainda assim não pude ir embora, no meio do caminho. Tive de voltar. A moça estava lá, afinal, era para isso que eu voltara à cidade. Pela moça. Que merda, moça estranha, por quê?

Chegando na porta certa, com a mão sobre a maçaneta, notei que ela não se abria. Desisto. Viro as costas, vou embora. Posso mudar o caminho, mas não discuto com portas fechadas.

domingo, 22 de maio de 2011

cena banal seis

Ormarg caminhava apreensivo. Um amigo seu, Vermorc, arranjara aquele encontro havia duas semanas. Um encontro às escuras, dissera o amigo, um encontro às escuras com uma fêmea que ele conhecera certa vez.

Não era necessária muita insistência para que Ormarg aceitasse o programa: estava sem parceira já há muito tempo, subia pelas paredes se não estivesse em campo de batalha. Vermorc dissera que a fêmea era boa, uma grande, encorpada, bem comos gostam os orcs.

Na beira do mar encontrou Ormarg sua dama. Ela sorriu para ele, virou as costas e garbosamente bateu com o rabo na superfície da água. Era uma orca e tanto.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

des regardes


dizem que o amor é cego
e a beleza está nos olhos de quem


ouve, então,
que és mais bela que a lua
no verão

e eu não via
antes de te conhecer
nem um palmo à frente do nariz

não que agora estou feliz,
ou que meus olhos te embelezem:
és bonita se te veem
ou se se fechem.

sábado, 14 de maio de 2011

quinta cena banal


O homem estava sentado no balcão do bar, com sua cerveja. A mulher bonita e maquiada, num vestido novo, chegou pouco depois e sentou a uma mesa. O homem se espantou com a beleza dela. Ela, por sua vez, pediu um vinho à garçonete. Sentou sozinha.

O homem viu, viu, ficou olhando e pensou, “já que ela está sozinha, vou olhar até o fim desta cerveja”.

E olhou. A mulher percebeu, pelo meio da taça, que o homem a encarava. Ficou sem jeito, assustada, tomou mais vinho e, fim, pensou: “ora, que audácia”.

Na outra taça chamou, com o dedo, o homem balcão do bar. Ele sorriu, sorriu, achou que tinha dado, que ela daria. Chegou à mesa todo sorriso, de orelha a orelha, falou “pois não?”

“Poderia, por favor, tomar vergonha na cara e parar de me olhar?”

cenas banais IV

ouço o menino de um vizinho vomitar até as tripas, em algum lugar aqui no prédio. É madrugada, o menino passa mal. Muito. Grita enquanto gorfa, como se o peito estivesse saindo pela boca, como o estômago, feito o resto todo se desfazendo em água.

Quando mais velhos, na metade da vida, não passamos mais tão mal como crianças faziam. Quando éramos crianças, digo. Passar mal feito esse menino, acordar os pais no meio da noite e ser carregado no colo, colocado no carro, levado ao pronto-socorro onde não te atendiam de pronto, mas ainda assim, no meio da madrugada, acordado, com os pais ali ao lado.

O menino ainda vomita. Parece que nenhum pai acordou. Parece que nem vai, parece que ao menino só resta mesmo a pia, privada e a fraqueza muscular.

Amanhã, o mal estar será o meu.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

terceiras cenas banais


entre gozos, juraram se foder para sempre. Depois, nunca mais se viram. Era patético o quanto de desprezo existia no próprio corpo que esporrava. No futuro essa palavra só seria xingamento: porra, caralho, vai tomar no cu!

Não agora. Entre lençóis, enquanto o outro no chuveiro, o um pensava pelos poros que queria ir embora. Mas não ia. Tinham pela frente pelo menos alguns dias... enquanto um voltava escorrendo água, o outro escorria por baixo da manta pra fora da cama, pra fora da casa, com o pé nu na terra ao quintal.

Num misto de querer e de não, metiam-se os dois por entre as roupas jogadas no quarto, por entre os vasos, por entre si, repetidamente, até que a única alternativa fosse sair, vestir alguma coisa mesmo que desconfortável e sumir na escuridão.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

segundas cenas banais


hoje fiquei horas olhando um passarinho. Horas de pássaro, claro, horas que passam em poucos minutos. Seja como for, o passarinho brincava de beija-flor, voando parado tentando catar com o bico uma fruta. Frutinha. Coitado do passarinho, não pode ir ao mercado comprar com dinheiro e encher o carrinho. Que horror!, não acham? Que horror...

Minha primeira profissão foi astronauta. A segunda, marinheiro. Quando tive 12 anos desisti de ambas as duas e pronto, cá estou, nem um nem outro. Nunca fui ao cosmos, pouco estive ao mar. Mas ressoa em algum ponto a questão do sempre estar, astronauta ou marinheiro, longe do lugar. Como se o deslocamento fosse mesmo a profissão de fé que a mim me coube. Sabe? Soube?