sexta-feira, 7 de setembro de 2012

angelologia I

Angelo viu uma flor ao chão, abaixou-se e a tomou entre os dedos. Continuou seguindo caminho, a flor amarela e branca coçando entre seus dedos, a mão meio fechada, meio aberta para as pétalas respirarem. Ele não olhava para a flor. Nem para o caminho, na verdade. Olhava, isso sim, para o alto de um morro que logo logo subiria. O Morro da Agonia. Pelo menos naquele momento, momento adiado adiado adiado mas que não adiantou, afinal, e foi que ele se pôs a ir. Tinha de falar com ela e não havia mais “mo-tivo al-gum para enrolar”, ela dissera ao telefone. Ele desligou. Ela desligou, na verdade, mas ele gostava de pensar que tinha tomado a iniciativa, desligado na cara dela e saído por cima, ao menos aquela vez. Em cima, na realidade, estava ela. Acima. No alto do morro. 

Uma borboleta pousou em sua mão. Na mão fechada. A outra mão, sem a flor – é bom esclarecer – a outra mão não existia. Tinha ficado em solo estrangeiro, numa guerra, há muito tempo. De modo que Angelo só tinha uma mão, a esquerda, que segurava levemente uma flor brancamarela e servia de pousadouro a borboletas. Porque mais uma se juntava à primeira, uma um pouco mais feia, sem tanto colorido nem muitos adornos. Uma mariposa, parecia, mas era uma borboleta, porque Angelo perguntou assim que ela pousou: 

- És também uma borboleta, és?

E ela disse que sim, era uma borboleta. Voltou a olhar para o alto do morro, e ambos os pares de asas alçaram vôo justamente para lá. A flor, intocada. 

- Não posso ir aí agora, Deise, não dá. 
- Pois venha. Venha sim, e agora, e já. Venha, Angelo, eu mando, tu vens, e pronto. 

Ele desligou. Tá, tudo bem, ela desligou, mas ele desligou, deixe-o pensar assim. Ele desligou, olhou o espelho e viu de relance sua imagem refletida. A moldura amarelada do espelho trincado era mais interessante, e a cada dia ele descobria uma mancha nova. No espelho e na moldura. Hoje, extraordinariamente, uma mancha também em seu rosto cansado. Mas não era uma mancha de cansaço, como poderia parecer, era não. Uma mancha de mamão, do café-da-manhã, ele supunha. Eram dez da noite. Menos de uma hora para encontrar com Deise. Menos de uma hora para andar mais de uma hora, entendem? Ele andou. Seria indelicado demais deixá-la esperando depois de ter, ora, desligado o telefone em sua cara. Na cara dela. 

Quando colocou o primeiro pé na trilha que subia o morro, o tempo mudou. Um vento forte soprou do sul e de repente a luz da lua ficou encoberta. Passou rápido, de todo modo, e ele já estava no meio do caminho quando a lua surgiu outra vez. Sua mão abriu, involuntariamente, e a flor voltou ao chão. Rolou uns metros abaixo e parou, apoiada numa pedra musguenta. Ele não desceu imediatamente para buscá-la, não; apertava a mão esquerda entre os dentes, tentando arrancar o ferrão da ferroada que fizera-o abrir os dedos. Abelha desgraçada!, pensou, e pisou nela com toda a força – na abelha que se contorcia moribunda na trilha, sem rabo, à sua frente.

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