quinta-feira, 30 de junho de 2011

cena 15, neutrox 1

Minha última ex-namorada ensinou que era bom condicionador depois de passar xampu. Xampu abre as fibras, condicionador faz fechar. Era o que ela dizia. Abrir o cabelo e deixar ele ao vento estraga tudo, de dentro pra fora.

A segunda ex-namorada ensinou que era bom, dia sim dia não, usar xampus diferentes. Tinha uma fila no nosso banheiro, no espelho do box: ao usar um xampu da ponta ele ia de volta pro fundo, pro fim da fila. Todo dia, pra não cansar o cabelo.

Minha primeira ex-namorada tinha um cabelo vermelho horrível, não me ensinou nada útil.

Quando criança eu fazia misturas, na hora do banho, na casa da vó. Botava num pote um pouco de cada xampu, condicionador, creme e tudo mais. Dali pra cabeça, e aí esfregar. Horas e horas alquímicas, lá. Eu me divertia.

Hoje, abrindo um sabonete novo, senti cheiro de banho antigo. A água caía que nem o tempo.

sábado, 25 de junho de 2011

cena 14, ulrico mursa


Certa vez vi um mendigo atropelado por um ônibus, em frente a esse estádio. Hoje, caminhando, vi Zé Ramalho levando James Brown no cano da bicicleta.

Na minha frente passam dois meninos, doze, treze anos. Um veste The Beatles, outro The Strokes. Ouço fiapo de conversa: "Você não acha que o Kiss já tinha perdido, nessa época, a..."

Mais à frente são parados por dois mórmons dos States. Loiros de camisa, gravata e mochila às costas. Provavelmente pelas roupas dos meninos, acharam que era campo fértil pra falar. Falaram pouco.

Os meninos, brasileiros, logo que desconversaram, deram mãos, cumprimentaram, seguiram andando pra lá.

Os dois mórmons vão embora, compassados passo a passo, pé direito, pé esquerdo. Dois mórmons americanos perdidos na nossa tarde.

cena 13 santo antônio em dia são joão

Foi desviar o olhar da quadrilha no meio da rua pra ver, no alto, a menina dançar com um bassê. Aquele cachorro salsicha, pertinentíssimo ao clima de festa junina. Porque em São Paulo, como se sabe, comida típica é pipoca e hot dog, talvez milho verde e bastante quentão. E vinho. Quente.

Olhando pra cima, janela de cima, no alto da casa, eu vi enquadrada a cena junina. No canto uma velha apoiada sorria, olhando a quadrilha dançar. No outro, um homem dançava com o bassê no colo. No meio dos dois, central na janela, menina pulava dançando pra lá e pra cá no ritmo velho do arrastapé, do anarriê. Ela e o bassê, no colo do homem.

Num show de viola caipira aprendi que pagode é um som lá do meio do mato, do pasto. Uma toada ligeira sem nada a ver com pandeiro. Antes eu já sabia que pagode é uma torre budista, um templo. Com pandeiro também há pagode.

A festa junina vista da janela era feita no clube de samba.

Monges budistas tocando pandeiro no meio do pasto.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

(cena) 12 sentido terminal

No início do caminho dois ônibus seguiam cheios, um atrás do outro. Era final de campeonato, dois ônibus cheios de torcedores de um time só. Começou o hino no carro da frente, ao que o carro de trás respondeu. Começou a cantar também. O tempo que levava pro hino chegar de um carro ao outro era o delay entre eles. O verso se repetia feito eco, e a torcida seguia feliz.

na volta, no ônibus em que eu tava, uma mulher com o supercílio inchado, tão inchado, que ou havia apanhado ou descendia de neanderthal

e

hoje uma criança pequena voltava pra casa ou ia pra festa, ao lado do pai, vestida xadrez, que nem caipirinha. No ônibus.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

ônzima cena


- Alô? Hm... uáááá! Como? Não. Não tem nenhuma Merlin aqui. Não. Tá. Bom dia...

O que me lembra ontem quando, andando de bicicleta pela cidade, parei no sinal vermelho. Frio, suando, atrasado. Ia eu pra aula de gaita, que era longe. Parei no sinal vermelho e olhei pra trás: vinha uma moça bonita numa bicicleta vermelha, uma moça bonita suada e atrasada, também. Parou do meu lado, cansada, sorriu e me disse OI!. Assim, em caixa-alta, com ênfase e certeza absoluta do que queria dizer. Me disse OI! e seguiu o caminho, com um residual "estou atrasada".

O sinal abriu e eu segui, pelo mesmo caminho que ela. Mas a moça, mais atrasada que eu, já estava distante. Fiquei olhando a bunda dela - sim, se alguém pedala na tua frente a primeira coisa a olhar é a bunda que mexe no compasso dos pedais, você sabe - e pensando "mas quem é essa moça? Conheço? Conhece? Ela falou mesmo como se conhecesse, não?"

E segui pedalando até o outro sinal vermelho. Em que ela parara. Sorri, ela suada, sorriu de novo e disse "estou atrasada. Para o balé, faz muito tempo que eu não vou. E ainda tenho que me trocar. Bom te ver, beijos" e foi. Definitivamente ela me conhecia, talvez vice-versa.

Continuei pedalando. A aula de gaita foi boa.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

cena dez

Sou meio disléxico. Algumas palavras simplesmente não me dizem nada. Houve numa praça, pouco tempo atrás, uma marcha. Pela liberdade. Marcha da liberdade, diziam. Disléxico que sou, não sei o que liberdade vem a ser.

Pessoas bonitas e nem tanto levavam cartazes, indignadas pela falta de liberdade, pela opressão. Numa praça. Pública. Pessoas que já conversavam com a polícia, antes, para manter a ordem, dar número de RG e posar para foto do jornal. Marcha pela liberdade.

No outro canto da praça circular um mendigo dormia. Vi a viatura da guarda municipal subir na calçada, subir as escadas e dizer ao mendigo "FORA DAQUI". A viatura era brava, cumpria ordens e não deixava o homem dormir.

Do lado de lá, pessoas bonitas erguendo cartazes.

O mendigo fedia, tinha muito sono e pouca dignidade, naquele momento. Cheguei perto, entre ele e a viatura, porque eu não sou de levar cartazes pela liberdade.

Do lado de lá, pessoas encenavam alguma coisa. Não pude ver, estava ao lado do mendigo sonolento. A viatura foi embora, olhando feio, o mendigo levantou aos poucos, dobrou coberta, vestiu mais roupa, pegou a mala e saiu pelo frio afora.

- Ei! - disse eu - os caras não te deixam dormir? Fique aí, meu velho. Deite ali do nosso lado. Lá eles não vão te importunar.

- Não. É foda. Deixa. Vou andar pra lá. Essas pessoas aí na praça não iam me querer perto delas.

Sou disléxico, eu disse. Liberdade é um bairro em São Paulo.

anotações para um romance nada romântico em clima de festa junina


o coração bombeava sangue pelas veias
e nas vielas a bomba ensanguentava
as muitas velhas
que eram velhas demais pra não olhar

o caminho daquela rua estava claro
com o clarão de pólvora cheirando a fogos
e crianças rezavam a são joão
para que não se apinhassem mais os corpos

porque o balão que subia aos céus
só por sorte desviava do dilúvio
em que bombas eram gotas que choviam

de joelho sem os pés
o menino vestido de josé escutava o fim da noite




segunda-feira, 13 de junho de 2011

cena banal (da) nona

Eu, minha vó e sua neta ali na sala. Seis anos, a menina, fazia aquele dia. Toca o telefone, ela corre pra atender. Minha prima. "Não, não, ele não. Não, o Waldemar morreu faz anos. Noooossa, faz anos, meu deus, muito tempo mesmo. Meses. Faz meses. Tá, de nada".

Desliga. Eu rio, vó ri, do telefone vem a prima, "Não sei por quê todo mundo liga aqui pra falar com o Waldemar, meu deus, não sei. Tsc, ele já morreu".

Noutro dia ela olha pro relógio. De pulso, novo, talvez ganhou no aniversário. Fica olhando, olhando, e a gente olha pra ela. "Ah! que droga! Esse relógio tá quebrado. Olha, olha os numerinhos: eles não param de mudar".

segunda-feira, 6 de junho de 2011

resposta a João Cabral

o amor não comeu nada
porque estava já sem fome

o amor não tinha estômago para engolir o que lhe davam
esses homens

o amor tentou comer um caldo verde
que era leve e estava frio
mas o estômago ulcerado não deixou

não sobrou nada para o amor

percebendo que a dieta era forçada
decretou-se o jejum
e o amor não comeu nada

jour de belle inspiration


enquanto penso em ti
ouço o som de uma harpa
ecoar em algum canto

não penso mais em ti
senão que gostaria de tocar
a harpa
por mim mesmo

mas a harpa pára
e não penso mais na harpa
só penso em te
tocar

cena banal eight(8)

caminho para a aula de hoje à tarde. É tarde, o sol já vai se pôr. Está se pondo. Passo reto pelo corredor que leva à sala: atrás do prédio o sol se põe. Está naquele momento em que faltam poucos dedos pra afundar no horizonte. Atrás do prédio, pra lá dos prédios, pra trás dos montes, o sol começa a bater azul-alaranjado na copa das árvores distantes. Distantes de tudo, as árvores, e eu sentado atrás do prédio da sala de aula a olhar.

Uma mulher, de repente, aparece. Chegou também para o pôr do sol, percebo, é da mesma sala que eu. Também está atrasada pra aula, mas resolveu que o sol vale mais. Sorrio, sem olhar pra ela, para não perder o fogo queimando o fim do mundo à minha frente. Que bom que não só eu olho o sol...

mas ela aponta pro céu uma câmera digital, bate uma foto e vira as costas, indo embora. Agora ela tem um belo pôr do sol eternizado, e eu chego na sala atrasado, mas tendo a memória de um sol azul.

domingo, 5 de junho de 2011

ais


adoro a diferença sutil entre teus olhos. O arquear espontâneo de uma sobrancelha e o jeito que a outra pálpebra fica semiaberta. Adoro te olhar enquanto tu me olha, com teus olhos estranhos e meio tortos, com teu olho esquerdo a se fechar um pouco. Adoro te olhar. Parece que sempre, sempre, estás piscando pra mim.