domingo, 29 de setembro de 2013

eu, quando era criança, não sabia o que seria. às vezes pensava em ser marinheiro, capitão-de-fragata, corsário, embora corsário tenha vindo só bem mais tarde, e até hoje é das palavras curiosas das que não se sabe o significado exato, mesmo sabendo. às vezes era astronauta às vezes biólogo às vezes biólogo marinho às vezes político e presidente da república, mas esse também veio tarde. e foi rápido, graça deus. às vezes pensava em alienígenas discos voadores abduções e viagens espaciais, pensava em mar em nadar em mergulhar pensava no fundo do mar quando era criança, pensava em muita coisa. eu sonhava de olho bem aberto, na escola, em subir correndo por uma pilastra e, lá no alto, no teto telhado fazer meia dúzia de acrobacias enquanto as meninas ficavam no chão, se estapeando, em disputa pela minha atenção. E lá no alto no teto eu macaqueava de uma pilastra a outra, de uma trave a outra, subindo até o alto mais alto possível rodopiando com a facilidade de um pé de vento. quando eu era criança, eu lembro, não sabia o que seria, mas sempre quis ser muita coisa. hoje, não sei. hoje, especialmente, hoje de fato não sou.

sábado, 28 de setembro de 2013

nada de novo sobre o sol
um dia apagará
os problemas
são mais antigos do que eu

o direito de cidadania
portanto, assim
é deles

eu
com minha novidade
que não atrapalhe os problemas

eu que os respeite
os problemas
são mais antigos do que eu

o direito de cidadania
portanto, assim
é deles

eu
com minha novidade
que não atrapalhe os problemas

eu que os respeite
caríssimo querido buda
desculpa
hoje acordei errado

hoje acordei com raiva
não não, não com
raiva assim de alguém
algo
nada
só enervado
hoje acordei enervado

caríssimo querido buda
?sabe

hoje o nãoouvir
o nãofazer
o nãoquerer
nãoajudar
o eu bem eu
o eu sim eu
hoje eu acordei
como quem não precisasse de acordar

caríssimo querido buda
hoje
diferente de quase sempre
minha cabeça passou voando e atropelou
os muitos que reclamam da natureza
do som dos bichos
das incertezas
certezas muitas

caríssimo querido buda
se a mente não fosse um macaco
pulando de galho em galho
mas sim fosse um elefante
caríssimo querido buda
as minhas patas teriam feito
patê de gente

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

hoje
a manhã não há
manhecerá aos poucos lentamen
te ouvindo ouvindo te vendo displicente
hoje amanhã não ha
verá quando a
caso outro dia fores

---

- E aí, nêgo?
- Nego.
- Quê?
- Que foi.
- Que foi o quê?
- Nego, nêgo.
- Mas né? Vai que...

---

[vamos fazer todas as coisas absurdas parecerem boas desejáveis
vamos fazer

?ou já fizemos]

---

lá embaixo há uma série de ratos
assistindo seriado lá embaixo

turbilhões de fogos fatos desg
arrados lá embaixo
enquanto o pato passeia a pata
pela lua cheia a lama enquanto a
alma
certeira se desfaz em fitas
se disfarça em folgas
e marmitas
as marmotas lá embaixo assistem
aos ratos
assistindo seriados

---

felicidade
facilidade

---

dar tratos à bola
a toda hora rola uma
história
de vida
decida
e vai

---

todos os problemas vêm juntos
todas as soluções também vêm

---

mais campos de carvalho
menos olavo

---

so*
n*o

---

a diferença entre prosa ruim e poesia ruim é que a poesia ruim
quando é ruim mesmo
acaba logo
a prosa ruim vai se arrasta a prosa ruim
ruim que só
a menos que seja uma epopeia
se a poesia for uma epopeia ruim
aí fodeu
mais que um romance
se for epopeia ruim então pega logo crepúsculo e lê
ou aquele livro do sarney do qual não me lembro o
título

ou será que sarney era poeta?

---

literatura contemporânea
repetição da modernidade
modernidade
repetição
da modernidade
fratura e modernidade
dom quixote todo fodido
literatura contemporânea
blabla dor blabla cidade blabla tristeza
ser alçado pelos ares pela pá do moinhão
ninguém quer não, quer?

---

anuncia-
se a Primavera trouxe
r flor
?trouxera

---

antes da era comum
era comum
já não é mais

---

- Gato mia!

- Miaaau.

- Gaaato mia!

- Miau!

- Gato mia!!

- Miaaaããã...

- Lobotomia.


---

é uma beleza atrás da outra
vão-se as flores
chegam-se as rosas

vinte e oito, pá

No bar triste doutra noite hoje ouvia rock & blues. Fiz a reverência ao buda de madeira antes de almoçar. Assim que ele sorriu, comi.

O caminho pra China passa por Portugal, vocês devem saber. Hoje logo cedo, antes mesmo de almoçar, fiquei foi bem sentado bem no meio de um lago, em volta tudo água bambus e carpas. E flor de lótus. Mas hoje eram mais.

Minha avó deu a meu pai um colar de ouro, de estrela, benzido em pai de santo. Num exu, bem da verdade. Isso faz tempo. Hoje o colar é meu, meu pai me deu antes de eu seguir. Era Exu Seu Tiriri, o exu, dos primeiros amigos que tive que eu lembro. Ele e meia dúzia de crianças mortas. Ou desencarnadas, como queiram.

Na reunião eu não falava chinês, mas desenhei no ar um ideograma com o dedo. Estava certo. Além do papel, o ar aceita tudo: mas nele o absurdo se desvanece muito mais logo.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

como vagas que de repente soter
rassem máquinas industriais
ou falo ou talo ou totem primitivos ou
esquilos guaxinins a lua de manhã o aca
so a morte a angústia de quem
dama de vestido verde amarelo eu e ela está
vamos ali encostados n
ão quero nem saber rolei com ela pelo
chão de giz e tantas tantas tantas referên
cias que aquela a quem se ama não consegue com
preender mas nem com muito sacrifí
cio

---

amargura não é a palavra
amardura

---

heterógrafos de poetas esquecidos
gumes bandidos de esquizofrenia
mente partida
diz a verdade
e parte

---

o mundo não é das crianças
mas devia
não ouça o que eu falar
dona moça
ouça não
que o que eu falo é pedaço
do chão enlameado onde passo
meus dias meus tempos meus nãos
ouça não, dona
moça
ouça não
que meus passos se apagam mal pisados
que meus rastros se arrastam pelo chão
num só estado
leveza breve e transmutação

---

amor
obrigado pelo abandono
orientador
obrigado pelo abandono
mestre zen
obrigado pelo abandono
desapego
nunca tive tanta sorte
e tanto sono
quanto agora
sem seus treinos

nunca fui de muito medo
obrigado pelo abandono
destino e
segredo

---

"I hope you
are doing well
that you are dancing
in a mystical circle
around sjamanistic fires"

[em torno de fogueiras
crepitantes
fogos xamânicos

e assim amanheço o dia]

---

apofática é negação
negatividade não

---

mundo é pequeno não
gente é que é grande

---

há dias e há dias
e todos guardam surpresas
até os dias em que
aguardas

---

sociedade do espetáculo não
sociedade do escândalo

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A ética da ética

ou Resposta de um antropólogo budista ao menosprezo com as baratas


Diz o amigo: "Recentemente ouvi uma história hilária: alguém contra matar baratas porque não se deve matar nenhuma forma de vida. Risadas? É bom da próxima vez que alguém te convidar para ir na casa dela você checar se ela defende os direitos das baratas."

E eu digo: não, sem risadas. Talvez um pouquinho, dos outros, das irônicas, mas nada que passasse incólume a minhas próprias risadas sarcásticas sobre outros absurdos obtusos, sobre outras questõezinhas culturais religiosas éticas políticas e - especialmente, especialmente - públicas e formadoras de opinião. Ou deformadoras, que hoje em dia já costuma dar no mesmo.

Pondé fala sobre um "budismo light (com pitadas de delírio)" e pergunta: essa moçadinha pirada - nós, no caso, eu - "já olhou para natureza a sua volta? A natureza é a maior destruidora de vidas na face da Terra. Ela mata sem pena fracos, pobres e oprimidos. A natureza é a maior "opressora" da face da Terra."

Ô se olhei. Ô se olho. O tempo todo. Como naquela vez em que salvei um passarinho machucado que, no fim, não conseguiu voar e foi semidevorado na minha frente pelo gato de casa. Lá em Caruaru, isso. Foi triste.

Ou quando esse mesmo gato - esse gato era impossível - brincou por horas com um sapo, coitado, até que eu visse e levasse o anfíbio pra fora. Não sem antes, culpa minha, quase arrancar uma de suas patas. Ou pernas? Não sei exatamente o nome dos membros saltadores dos sapos. Sei que quando libertei o coitado, todo mazelado, ele não deve ter durado nem cinco minutos no brejo da frente. Eu sim, eu sei, a natureza é foda e não dá colher de chá pra nenhum ser por aí afora. Colher e chá são invenções da cultura.

Assim como o budismo - "light" ou com gordura -, assim como o judaísmo do Pondé, assim como sua epistemologia profunda, assim como o cachimbo que ele pita e a couve orgânica que eu como. Que eu nem como, mas dava uma boa imagem complementar.

Por ser cultura, e não natureza, é que nós budistas tendemos a não matar intencionalmente outros seres. Matamos uma caralhada, é fato, aos baldes, na colheita dos grãos por ceifadeiras que vão arrasando plantações inteiras. Sabemos disso, das mortes dos insetos, pequenos mamíferos, anfíbios e répteis. Aves talvez não, embora eu tenha visto um beija-flor esmagado pelas rodas de um carro, dia desses.

Sabemos disso, porque nossa cultura e pensamento são também autorreflexivos. É fácil compreender as próprias limitações quando se está bem situado nelas. E nós estamos. Bem situados, enraizadíssimos. Tudo o que somos são limitações.

A questão que se coloca é: e então? Sabendo disso, sabendo que a natureza da natureza é o assassinato a sangue frio - mentira, não é, mas fiquemos com essa imagem - o que nós enquanto cultura vamos fazer com isso? Assassinar a sangue frio? Friboi? Expor com orgulho pedaços arrancados de outros seres vivos entre um bloco e outro da novela? Entre uma trepada selvagem encenada e um quiprocó homofóbico com o torto intuito de esclarecer a população contra a homofobia? Ou quaisquer dessas pautas justas que as novelas tentam e costumam transmitir da forma mais errada possível...

Nós somos animas, somos natureza, nossa essência é descer o cacete no adversário e dominar o território. Mas enquanto eu escrevia toda essa oração, minha essência não era só natureza desregrada. Era, também, natureza equilibrada. Apta a lidar com símbolos, linguagem, consciência. Compaixão, como diriam os mestres budistas - ou qualquer budista com o mínimo de coerência.

E a compaixão nos leva de volta às baratas. Nos traz. Porque dizia uma mestra, num retiro em que estive há pouco tempo, sobre um templo cheio de baratas. Ela disse, caro Pondé, meu amigo: "É claro que não podemos ter baratas no templo. Isso demonstraria descuido, desrespeito, desleixo com o lugar. Falta de diligência" - diligência, Pondé, é uma das virtudes transcendentes do budismo, bem como a compaixão. E a mestra continuava: "Surgindo uma barata, fazemos o possível para levá-la pra fora, sem ferir, sem matar. E voltamos a atenção à diligência, à limpeza do templo, à viabilidade do espaço que ficou faltando."

É preciso cuidado com o mundo, atenção para com as coisas e os fluxos dinâmicos que as relacionam - esgoto mal cuidado, comida apodrecida, cidades esquizofrênicas tumultuadas sem saída de ar, de água, de vida: isso atrai baratas. Isso atrai velhice doente, doença e morte civilizada. E morte civilizada é morte esclerosada, é a negação culturalmente construída de uma realidade dada. Para os budistas - nós, no caso, eu - a morte, a impermanência está aí. Podemos compreendê-la e a integrar à vida, porque ambas são integração, ou podemos tentar, com sarcasmo e desinformação, desinformar nossos irmãos humanos e nos iludir que ludibriamos a morte. A tristeza. Mas não ludibriamos, e quanto mais contra ela, mais ela está conosco.

Mas digo tudo isso, divago tanto nisso porque agora há pouco entrou uma barata em casa, no quarto de minha irmã. Que não é budista e gritou como uma desesperada. "Rápido, antes que eu mate!". E fui. Com uma saudação budista - ridículo eu, né? Ateu e laico fazendo essas coisas, saudação budista de compaixão por uma barata - com uma saudação levei meus chinelos para recolher gregorsansa. Com meus chinelos, claro, porque eu sou budista mas conheço a teoria dos germes.

E a barata - veja você! - virou de ponta cabeça, de patas pro ar. Como se estivesse morta, mas não estava - por um momento, admito, fiquei preocupado por tê-la matado. Não estava morta e assim que pedi "vem", com meu chinelo perto dela, ela veio. Subiu na borracha, teve a decência de se manter na sola das havaianas e ficou ali, quieta e comportada até que eu a levasse para a janela. Janela afora. E para o mundo.

Porque há culturas e tradições que simplesmente veem o mundo como inimigo e lutam para o controlar. Porque há culturas e tradições que, negando a natureza com tal obtusidade, se separam dela e se arrogam um sarcasmo mal disposto. E há outras. Algumas das quais, evoé, saravá, axé, gasshô, faço parte. Graças a Deus.

Em tempo, também pensamos sobre a dor e sofrimento das alfaces. Não somos insensíveis. Nem desrespeitosos.

(Para quem se interessar, eis o link do texto que deu origem a essa minha reflexão: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/09/1342503-a-etica-das-baratas.shtml)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

arma
zen
ar

---

triana, triana mía
triana del' madrugá
un día vuelvo a triana
hacer cantares allá

---

o corpo da vida é linguagem
a alma da vida é vida
desalmada, falta vida
descarnada, falta língua
e quando são as duas
uma só
e a mesma coisa
a vida da língua é corpo e a alma do corpo é língua

---

o poder do
não, não é

---

[ninguém devia se dizer "filósofo"
nem "poeta"
nem "correto"
ninguém devia se autodeclarar

tô só comentando]

---

[o que nos permite julgar tão automaticamente as pessoas
via internet?
será o mesmo que nos permite
julgar as pessoas tão automatica
mente como fora da internet?]
fantastique
c'est une litérature
très chic

fantasia
é desperdício de linha

---

poeta porreta profeta proxeneta

---

ah, espaço da escuta
seu filho da puta
em que buraco bueiro bu
cê tá enfiado?
---

transcender a modernidade
pela ironia
fazê-la tomar do próprio
veneno
transcender a modernidade
aquiagora
gil gomes sob um copo de cicuta
escuta
sócrates
fazendo um gol
transcender o moderno pelo
concreto
sarcasmo escorregadio
do ofídio
enclausurado entre jaulas de geléia
geral
levanta a mão
e diz hey yo
armas químicas entre nós
fisicamente impossíveis
e te deslocas como sóis
geograficamente distantes
astronomicamente distantes

sábado, 14 de setembro de 2013

ccena bbanal

Rio de Janeiro, museu, exposição de arte, galeria. Uma menina, sorrindo, tirava foto de si mesma. Naquelas poses de autofoto, ângulo alto, sorrindo. Sorrindo. Mão na cintura, sorrindo. Flash. Sisuda. Sisudíssima. O sorriso bonito era mesmo pra foto, e só. Clicada, voltou ao normal, voltou a não ligar mais pra nada. Museu, coisa chata. A telinha da câmera digital não estreita só a vista, mais. Hoje em dia, sou forçado a achar, estreita a vida. Sisuda. Chata.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013


a máquina de guerra move as engrenagens
um velho berra e uma criança
no desterro ouve a chuva
caindo em desespero
no seu berço

a máquina de guerra não quer nem saber a
máquina só quer passar passar
a máquina o que faz é isso
a máquina a maquinar

enquanto em algum precipício pela borda
um cego erra sem saber sem esperar
que a máquina de guerra vem chi
ando e chiando vem a má

quina de guerra o tiro o sol que erra
o sol que acerta ofusca o fusca o
tiro o desperdício que me acerta
em
cheio
a máquina de guerra bem no meio
bem no meio de uma paz a guerra está

---

gelo no joelho
passa

---

ela não tinha olhos azuis
mas é como se eu visse céu e
mar ela não tinha a pele branca
mas como neve era como se de
repente derretesse algo aqui dentr
o que mais incendeia é o fato de q
ue não tinha cabelos ruivos ou
pelo menos ainda não tin
ha contentamento en
cantamento não ha
via um sozíssimo momento
em que seus olh
os azuis não fos
sem areia

---

[você que dizia
"na ditadura era melhor"
pois é
ditadura tá de novo aí

você que dizia
"na ditadura era mais fácil
o inimigo era mais claro"
pois é
ditadura tá aí de novo

você que dizia
"deus me livre da ditadura"
pois é
tá aí de novo a ditadura

você que é mudo
ou mudado
pois é
ditadura pra todo lado]

---

não sei se é indigestão
ou meu coração parando lentamente
enquanto as mãos sorriem
sorriem
tremendo
não sei se é indigestão ou
passar do tempo

---

i
no
cu
o?

---

?o dono do cão que abana o rabo
ou o rabo que abandono?

---

(pégaso)

diz
monte
que não dá pra
carregar
fala ent
alada

---

[nota sobre democracia:

se sua opinião é um contrassenso
se sua opinião é ilegal
se sua opinião não é amparada por qualquer racionalidade e lógica jurídicas
então, meu amigo
a democracia não autoriza que ela se transforme em argumento

muito menos argumento de autoridade]

---

julgada
por abandono
de lá
ela
foi

---

esculachou-se-me

---

caramba
nun
ca vem
ma quando
vem
bomba

---

animador cultural
animus
à flor da
pel'
anima
da cor da

omnibus
tudo que
é

---

como ela
é incrível

---

no Rio também é
proibido
o uso de máscara
de mergulho?

---

todo dia cai
uma

orre

---

você não
sabe
até que
sobe
você não
sorve
até que
sopre
você não
ouve
até que
couve
não, brincadeira
você não
sabe
até que
saque
que sempre
arca
co's badulaque

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

microcrítica literária: júlia de carvalho hansen & fado blues

Conheci Júlia quando conheci Lisboa, mudando eu pra lá e ela, acho, recém-mudada. Ou quase. Ou quase nada. Lembro da história das histórias de portugueses, de seus lentos desenrolares, arrastares, que ela me apresentava - a mim, recenzíssimo-chegado. Gabriela Llansol, Natália Correia, possivelmente Sophia de Mello Breyner Andresen, falava Júlia enquanto eu olhava a cidade lá embaixo, do alto do miradouro da Graça, perto de casa.

E digo isso porque por muito tempo, uns meses, seu alforria blues ou Poemas do Destino do Mar ficou perdido à deriva entre minhas coisas, carta de socorro sufoco e desabafo carregado pelas vagas de minhas malas, livro-mensagem engarrafado. "Abril de 2013", diz a última página, "Ano 457 da deglutição do bispo Sardinha". E só agora, passados meses e voltado eu ao Brasil, termino de ler o pedido enquanto Júlia caminha, ainda, na ilha de Dom Sebastião. Que é uma península. Mas mensagem jogada ao mar de uma península não tem o mesmo efeito.

A imagem do cavalo, recorrente mas sempre tênue, "pássaro selado e cego" (IX), percorre o livro enquanto percorremos o livro enquanto Júlia percorre, ao que parece, o livro. E o país antigo, aberto como um livro mas grafado velhamente em caracteres barrocos em escrita medieval. Um país aberto de difícil leitura, de lida não fluida, mas lá, escrita, língua de Camões e terra também.

(Foi essa uma das coisas na primeira conversa com Júlia: o quão diferentes eram nossas formas, brasileira e portuguesa, de ver o mundo e de se [nos] relacionar[mos] com. Flagrante exemplo: a dicotomia quase abissal entre "perceber" e "entender", que para nós aqui são dois verbos distintos e para eles, não exatamente. Perceber é entender, mas é um perceber de longe, como quem nota a passagem. Entender, mesmo, "compreender", é mais inclusivo, mais antropofágico, nosso entendimento tem esse caráter pouco nobre e muito devorador, esfomeado. Entendemos, perceba, compreendemos. E comemos o entendido.)



"Não sei o que o Sr. Fernando Pessoa consideraria ao saber que nenhum brasileiro ao ouvir 'o brasileiro' pensaria em algo além do povo ou de um indivíduo, e que nunca (a não ser a viver em Portugal), nunca pensaria que 'o brasileiro' pode se referir ao idioma falado no Brasil", diz um poema da parte alforria blues, parte que tem "títulos com palavras, e não números romanos". Este, por exemplo, chama "Estou bem aqui". Com todas as acepções que isso possa.

Este livro, parido com a ajuda das Edições Chão da Feira (outro empreendimentaço que fica pra outro espaço), de Carolina Fenati (um abraço), apresenta um diálogo constante entre chão e pé, por mais que o cavalo recorrente corra, como mencionei bem vagamente, servindo de motivo e símbolo. Por mais que as patas e cascos carreguem nas costas o lembrete: é vida. Vida é vida. Espaço novo terra nova velho mundo, vida estranha e incompreendida. Por um tempo, até que muda.

"Deixar pousar
o torvelinho nas mãos
que faça seu ninho
sem quebrar a joia
que te dá o mesmo que te tira." (VI)

Tem um amor, também, apresentado. Um que se vai desdobrando como se folha fosse, ao vento, que é cavalo, que é tempo, que é presente. Júlia parece conversar com as coisas enquanto acontecem agora, mesmo que carregue uma nota de passado, de lembrança, até nostalgia e apreensão. Ou não, mas sim, porque ela diz

"Passo a manhã calculando a provável altura de um tsunami
que viesse por debaixo do morro, me encontrasse sentada
nesta porta de varanda sobre o Tejo.
Não sei, mas já me aconteceu outra vez." (o mesmo poema IX)

Relato de experiência de divisão, entre visões e imagens, algum ritmo e muito logos delirante. Experiência de escrita e leitura complementar, como o espaço de complemento que vem depois de endereço. Ou, em Portugal, morada.

O poema XVIII diz, numa estrofe, um pedaço que li primeiro estampado numa parede do ateliê/estúdio/incubadora de Júlia, no dia do lançamento. Ao mar. Cavalo. Um pedaço de poema que eletriza e sumariamente explode a existência. Fazendo-a se adaptar, apenas porque sim, porque esse é o único jeito, a despeito do "puído da vida" (X). O único jeito de viver. A estrofe rascunho na parede, que está no livro, encerra isto, esta microcrítica. Reverbera.

"O raio abre
o tronco em dois.
Da metade árvore
nasce um deus
de patas firmes.
Doce cavalo, peço
com a tua língua impura
por onde passar
tece e cicatriza
a folhagem, tremor"






Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2013

"Os livros são vendidos através do e-mail da editora: livros@chaodafeira.com

Podem também ser encontrados na Livraria Quixote, de Belo Horizonte, na Intermeios Cultural, de São Paulo, na Gato Vadio, do Porto, e na Letra Livre, no Paralelo W, em Lisboa]

a horta
ensanguentada
pés de tal
magnitude
frondosas árvres
forçados galhos
sob o peso
dos amantes
enforcados

---

sendo pobre
ir à falência é questão de um passo
não é o mesmo se você for
um ricaço

---

nossa
?me lembra sabe o quê
guimarães rosa
pauleminski
marcelino freire caramigo
?sabe você
nossa

[de intitulação possível: com tais influências não há angústia]

[ou: você é o que você come

ou: tá ca porra que não chego aos pés

ou: ?mas é

ou, simplesmente: poxa, !obrigado]

---

na falta de um coração
pulmão

---

regular
mente

[e todas as demais variações
adverbiais
desse buraco sem fundo
negro poço confuso
que é o pensamento]

---

ao
tu
fla
gelo

---

je
sus
mo
rreu
na
cruz
e
di
sse
ai

---

existe um grito
preso
um
grilo
preto
ganindo
pelo
nascer da aurora

---

friboi, querida
tu é uma assassina
especista
e usa um lobisomem de garoto propaganda

tô só comentando

---

mas, olha só
falo por experiência
olha a lua toda noite
até quando ela não tem
e não só quando alguém
compartilha foto

---

estrela e
quilibra ponta
lua que aponta de
do buda que a lua
conta

---

[enxergo o teu cristo, Rio

enxergo o teu cristo, rio

Cazuza, seu gênio]

---

da esquerda pra direita
legendas imaginárias:

ajoelha, chupa
não não não
tamo fazendo nada
não
pára, cara, senhor
não não
ah!
chupa, falo, chupa logo

e lá no canto
espanto
fodeu-se tudo
foto de Uirá Tiago Alencar, retratando o 7 de setembro (rá!) na Bahia

---

[a emergência do imaginário anarquista e libertário, meus amigos, diz muito - mas muito muito mesmo - sobre nossas crenças atuais na democracia representativa, na partidarização e no voto.

muito
muito mesmo]

---

de um lado as bombas
de efeito moral
do outro na
moral
os bambas
descendo o morro
na
valha
me
u
deus
no dia em que o morro
desceu
e as máscaras lá
proibidas
como artefato de guerr
ilha
a gente falando
fal
ando
enquanto que o coro
comendo
com
medo
cacete cacete
casse
tete
ainda bem que passou
dia sete

---

cada passo cada
soldado
cada pedaço de desfile
cada verde boina
marinha
cada coisa militar
cada fuzil cada polí
cia cada cada choque
um dois um dois
marcha soldado
cabeça de
cada deslumbre desfile
cada pátria costurada
distintivo
cada orgulho
nacional cada tumulto
dispersado
cada braço forte mão
amiga
é uma criança síria
desfeita
química

---

e você aí
que critica o fora do eixo economia coletiva capilé e mais um monte
de coisas das quais não sabe nada
e você aí
estava lá também
batendo
batendo
batendo
gozando de bater

é
você aí

---

[cinco pms no calçadão
desfilando
avenida da praia
desfilando
sete de setembro
desfilando
atravancando o tráfego
o tráfico
o pogresso
atravancando
cinco pms
e eu correndo
e eu correndo
passando ao lado
passo na rua
porque a calçada
atravancada
dou susto
susto
bato palma alto
faz barulho
pm puto
atravancando
a rua atravancando
e eu passo
correndo
por cinco pms atravancadores
eu passo
correndo
e olho
correndo
pra trás
correndo
com cara feia
correndo
porque pm
merece o susto
pm desfilando
atravancando
era só o que me faltava]

---

debaixo de bala
deixa
que os menino joga
bola

---

não existe neste mundo
e nem mesmo em qualquer outro
algo como
independência
nada é um buraco solto
nada é oco
nada é mesmo independente
do entorno

pois repito
não há nada neste mundo
independência

---

[e então, depois de mostrar
vandalismo absurdo manifestantes quebrando tudo
- quebrando nada
coitados
só sendo escorraçados pela polícia
persecutória -
e depois, na reportagem
que se seguiu
!puta que pariu
puta
,olha só
quão são sábias
mídias velhas
depois da cafagestagem da montagem da narrativa
telejornal
vem e aparece uma menina
suposta artista
atriz,assim,qualquer coisa tipo
e diz, bonito
:a mudança é interior.

!não importam questões econômicas
sociais
diz a mulher dos telejornais
a menina aqui meditou
meditou
!conseguiu

puta que pariu
independência
puta que pariu]

---

ah, independência
bom dia, ahn?
bom dia
independência
há?

---

ri ri ri ri ri ri ri ri riri ri riri ri riri ri riri ri r iri r iri r iri r iri r iri r iri r iri r i r i r i r i r ir

---

uc

---

a poesia olhou pra mim e
riu
!toma vergonha na cara
,moleque
ela disse
toma vergonha
!que eu não sou u'a dessas
não
das que te acostumaste a passar
a mão

---

de pensar morreu o
burro

---

de uma estupi
dez grassada
mas linda
linda estonte
ante

---

luz sobre luz
como diz o corão
luz dentro em
luz
cora
ção

sábado, 7 de setembro de 2013

cena triste de tuim

Encontrei com um peixe no mar, na beira do mar. Um peixe cercado, preso, morto, de barriga aos céus. Dentro de uma garrafa pet, um peixe boiando na pouca água que ali restava. Andando na praia, eu, depois de horas esperando uma amiga que não veio - uma amiga de um amigo meu, que nem conheço mas que por acaso está na minha cidade. Onde eu estou. Onde encontro o peixe morto. Onde sou. A garrafa de limo em volta, em torno toda, garrafa plástico verde escorregadio, lá dentro um peixe um dia vivo que não mais é. Um peixe triste, inchado, maior que a boca do artefato, maior que a entrada por onde entrou. Volto. Com meu pai, na escada, passamos horas a subir degraus. O tempo passa mal, o tempo faz, o tempo arrasta e apreende. Aprisiona. Um peixe na garrafa. A ex-mulher diz que quer ver, quer conversar, e conversamos. Instantâneo. Escorre uma tristeza do nada invisível ao dentro todo. Transborda. Ninguém sabia, ninguém nem mesmo suspeitava, eu pelo menos. Se alguém soubesse, se eu soubesse, juro que não abriria a porta, essa porta inerte que já nem mesmo a um beco dá. Horas na escada, degrau a degrau suadamente subidos, nós dois e o destino, a dificuldade, o tempo, a doença, o peso. A ex que pediu. Que viu. Esteve feliz por enfim me ver. E eu também, feliz, escorri. Lamentadamente por dentro mais muito mais que por fora. Mas até por fora. Porque até quem não percebeu, percebeu. Peixe em garrafa, no mar, entre o limo, morto e boiando no breu. Fecha um ciclo, noite no bar comendo espetinho de queijo coalho queijo nordestino, do nordeste onde morei do nordeste onde era tudo quase sol, quase sempre. Fecha um ciclo, meio aberto, meu pai olhando ao outro lado da rua uma casa de jardim deserto em que foi criança, onde a vó morava, rua em que cresceu. Breu. Lembra do vizinho ao lado, do vizinho ao outro, da vizinha em cima, não do que sobrava na terceira casa de portão azul, esse não lembrava. O bar em que bebemos era um mercadinho, o vizinho ali era um velho amigo. Silêncio. Só percebo, observo, mais não digo e os olhos rubros os olhos vermelhos do meu pai olhando a casa velha ali espelham os meus. Meus olhos vermelhos não pra casa velha, mais por ela, que sumiu na neve distante ensolarada no frio gelado de uma madrugada belga. Peixe. Morto. Dentro do infinito plástico do limo, água pouco a pouco escorregando. Praia. Escada degraus eternidade. Amiga do amigo que não chega, praia tarde, sol brilhando, pai olhando a casa velha, sua infância, eu a minha - eu olhando crianças que julgava logo logo serem minhas, mas que não, resistindo nada nada à mulher que me deixou -, todos nós, escadaria, subindo e descendo o tempo o tempo todo. Traçando riscos, paredes, confinamentos. Peixes em garrafas estreitas, beiras de mar. Todos nós, toda maré. Rolando entre areia e limo até finalmente, num último breve instante de riso e suspiro, brilho nos olhos, parar bem ao pé do tempo. Que ri. E passa.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

e então ela vem
com um sorriso e
quebra aos pedacinhos
a máscara de minha face

e então ela vai
como quem não sorrisse
como quem não levasse
meu rosto consigo

e então não consigo
sorrir aos pedaços
nem um riso inteiro
que não reparasse

que da minha face
caldo de onde venho
só há um lamento
no poço em que nasce

---

ex
tre
mece

---

enquanto engoma a calça, de ednardo
deus me proteja de mim, de chico césar
paulinho da viola
dorival
tudo em rubem braga
visagem em murilo mendes
gil gilberto
veloso em grande parte
sabença em quintanares
e mais um monte
mais
são de uma infinidade tal
que nunca acabam
.são demais

---

No sonho, perguntei para as crianças que brincavam nos telhados o que elas faziam lá em cima:

- É o lugar que temos, agora. A civilização está muito espalhada.

[versão livre e distorcida, porque de memória, de um dos textos do Livro dos Sonhos, de Jack Kerouac]

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caetano, 2013, black bloc

caetano, 1968, vocês não estão entendendo
nada

um ano complementa o outro

é uma circularidade desgramada

filhos de uma estética
ética
política torta
,numa boa

é proibido proibir
mas hoje não tem fernando pessoa

---

não quero sequer
uma rosa uma flor
uma pétala nenhuma pétala
em meu túmulo

meu corpo morto não sou
eu morto não sou meu corpo
e não eu não valho uma flor

por isso que valho tanto

---

perguntou a estrela
que faço?

cometa
respondeu o astro

---

pérolas aos porcos
capitalistas

esse sistema não é mesmo
uma delícia?

---

o que posso fazer além de
sorrir?
só rir

---

você tem uma fé inabalável
incrível
uma fé no futuro
impressionante
você tem

ela me disse
e eu
de fato tenho

---

nenhuma rua é sem saída
pra quem sabe olhar pra cima

(a menos que termine num túnel
se a rua termina num túnel
lascou-se tudo)

---

e então todas as portas se fecharam
todos os sons
em meus ouvidos só os toques de outros sinos
outros tons de outro hemisfério
o silênco musicado
o mistério
do então de quando as portas se fecharam
e estive quieto
sem ti por perto
mas também sem furacão

---

[decolar
em portugal
descolar
em espanhol
despegar

falta
acho
pro avião do brasil
um tanto mais da noção
desapego

mas nem só pro avião
mas nem só pro brasil]

---

[Brasil, querido

polícia estúpida
governantes mais-estúpidos
ferreira gullar ultra-estúpido

vocês se importariam de parar
com os absurdos?

é que, sabe,
eu estou tentando ler aqui
fazer outras coisas da vida
e não ficar só
lamentando
e lendo vossos pronunciamentos
vossos relinchos

Brasil, querido
pode ser ou tá difícil?]

---

sen
ti
minto

---

u
ma
más
car'
hu
ma
na

---

eu deveria
deveria
dever
ia
ia
devir

---

tinha um caminho
no meio da pedra
no meio da perda
um carinho

---

as narinas são o inspiro
deus divino ar
mistício amster
dam
entradas para um novo mun
do velho
o respiro é o desterro
do amanhã

---

você vai e escreve
você não, eu, mas você vai
e escreve
que a fada é um fada é um homem velho e
bravo
e crianças escutam
e dançam
como um fada
- uma não
como um -
e ele passa
a ter bem mais graça que a sininho
pôde ter

veja você
depois que escreve
e que escutam
e que elas dançam
as crianças dizem logo
a seus pais
- não a suas mães
mas a seus pais -
que eles bem podem bem ser
melhor, que devem ser
fadas também

e aí vem você me dizer
que contos de fadas
não dizem nada
sobre o real
nem vem
você

---

burocracia é a chance
la da ignorân
cia limitada

---

toda pessoa é uma máscara
toda identidade social
é uma máscara
toda máscara hipócrita
é máscara
e é máscara a máscara
não hipócrita também
a sociedade é uma máscara
a sociabilidade é outra
máscara é
uma máscara é
uma farsa
se boa ou se má
tanto faz
máscara é, e sem mais

mas
mascarada
mascarada é uma festa

---

mascare-se
contra o
massacre

---

independência ou
morte
e esse foi um claro caso
em que o ou
o-oh
conjunção de alternativa
incluiu
e disse assim
- e ainda vem
dizendo
ainda sim -
independência e morte
cambada

infeliz
mente

---

a liter
atura
está n
aa mão

---

eles vêm com porrada
pancada e ódio
eles vêm com horror
e com imbróglio
eles vêm
de pouco em pouco
e às vezes tudo de uma vez
eles vêm e estão errados
argumento de otoridade
eles vem chutando o saco
prendendo matando
botando no saco mesmo
no saco preto
eles já vêm na maldade

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

árabe não usa arabesco
nem ábaco nem tabasco
como se fossem o mesmo
pimenta adorno e cálculo

---

tem mística plena
nos olhos que olham o olho
da menina
nos olhos
tem mística plena

---

um vaso de pe
túnias
conhece o real

---

não se deixar levar
pelo olho
não se deixar
levar pelo olho
não se
deixar levar pelo olho
levar pelos pelos

---

oh, penas,
penas,
tantas tenho
eu
por que não
então
me fazem voar ao céu?

---

internet
quando ku klux klan virou risada

---

ela em ela
a corrente da
mi'a vida
vai

---

dê de
comer
ao moço

---

fique bem, aí
mova
não fique bem aí
fique bem, aí

---

o que me
expulsa é
que me im
pulsiona

---

poesia
'ssa metáfora ambulante

---

queria mudar
o mundo
foi lá e o
mudou

---

se
apesar de te amar
eu te amo
como?

---

um pássaro voando vale mais
que todos meus poemas
juntos

um pássaro pousado também

---

ironia
é quando o amarelo morde o hipotálamo do teu cérebro
é um dejavú de sentir-se mal
ironia é uma flor que nasce nas dobras da pele
a espera do incriado
o sentido congelado do macaco aranha
é andar pra frente querendo dizer chegue
é um grito de me acompanhe
é um não faz mal

---

vai dormir que teu mal é sono
disse o espelho
a meu olho

---

cans
aço
mundo cão
e duro

---

às vezes penso ''por q
ue não estou com ela?''

às vezes lembro

---

desper
cio

---

sonhei com ela eu
pensei que nunca mais so
nharia com ela eu pens
ava que ela tinha mesmo si
do completamente despej
ada do meu inconsci
ente mas aparente
mente não

---

não importa quão libertário
no fim, teu nível de moralidade conservadora e caretice é dado pela velocidade com que, pelado na janela de casa, corre pra dentro pra se esconder
vergonha é o maior indicador político-ideológico, sociocultural
da humanidade

---

janelas são portas
ainda não crescidas
são portas só pras vistas
janelas são portas que exigem
um pouquinho de vontade do passante
que se espreme na moldura
pra passar
janelas são os olhos da alma
por isso deus fecha tantas portas

pra abrir muitas janelas

---

sol

é a palavra mais alta do mundo

---

uma vez, tinha eu menos de dez, passei a noite numa festa de amigos dos meus pais, brincando com uma menina negra mais nova que eu. Lá pelas tantas, como crianças, começamos a brincar de xingamento - que é uma brincadeira social muito saudável e amplamente praticada, não só na infância. Não lembro se era o nariz ou os lábios que ela tinha um tanto meio tortos, aduncos, me lembrou um papagaio. Chamei. Aí notei um queixo quadradão, coisa de rosto de alemã, mais saliente que retraído. Me lembrou de um macaco, na hora. Chamei. Mas juntei os dois, na brincadeira. Lembro até hoje: queixo de macaco com bico de papagaio'', em repetiçõezinhas musicadas, infantis.

Tomei um esporro da porra. Ela era negra, não podia ser chamada de macaca! Demorei pra conectar meu xingamento de raiz animal com o racismo de origem social. Até porque, tinha o papagaio... acho que a menina nem foi reclamar por eu ter ofendido sua negritude, mas sim porque eu era maior que ela, chato pra caralho e estava ganhando o jogo dos xingamentos (eu era gordíssimo, vale notar. Ela tinha um farto e amplo e rotundo material com o qual trabalhar, não estávamos em condições muito injustas)

Mas, por fim, entendi meu racismo involuntário. Devo ter pedido desculpas, mesmo se ''mas não tinha nada a ver com isso eu tava falando porque mas mas mas...''

Pensei nisso ao concluir que, por mais que o sujeito seja corporativista e contrário à politica em questão, chamar um negro de ''escravo'' não pega bem. Mesmo que ''escravo'', nesse caso, não fosse - como eu acredito que não tenha sido - necessariamente amostra de racismo.

Só de estupidez. Eu tinha menos de dez. As médicas cearenses, espero, não.

---

pelo remédio caseiro da vó benta
pelas ervas curativas pela rezadeira
pelo pajé pelo xamã pelo acupunturista
pelo pai estralando a espinhela caída
chá de boldo pra curar ressaca
boldo amassado amargo pra curar ressaca braba
pela bendição contra o mal-olhado
pela reza pela preza pela água benta energizada
pelo alho contra inflamação e contra cataflan
pela aliança esquentada na palma pra curar tersol
pelo sol
pra curar o resto

---

por que todo mundo quer
sempre entender de tudo?

faça um café
e fique quieto.

---

hoje de novo zarpo
zarpo novo de hoje
não paro não paro
não paro
estrada me engloba o globo
hoje de novo movo