terça-feira, 17 de setembro de 2013

A ética da ética

ou Resposta de um antropólogo budista ao menosprezo com as baratas


Diz o amigo: "Recentemente ouvi uma história hilária: alguém contra matar baratas porque não se deve matar nenhuma forma de vida. Risadas? É bom da próxima vez que alguém te convidar para ir na casa dela você checar se ela defende os direitos das baratas."

E eu digo: não, sem risadas. Talvez um pouquinho, dos outros, das irônicas, mas nada que passasse incólume a minhas próprias risadas sarcásticas sobre outros absurdos obtusos, sobre outras questõezinhas culturais religiosas éticas políticas e - especialmente, especialmente - públicas e formadoras de opinião. Ou deformadoras, que hoje em dia já costuma dar no mesmo.

Pondé fala sobre um "budismo light (com pitadas de delírio)" e pergunta: essa moçadinha pirada - nós, no caso, eu - "já olhou para natureza a sua volta? A natureza é a maior destruidora de vidas na face da Terra. Ela mata sem pena fracos, pobres e oprimidos. A natureza é a maior "opressora" da face da Terra."

Ô se olhei. Ô se olho. O tempo todo. Como naquela vez em que salvei um passarinho machucado que, no fim, não conseguiu voar e foi semidevorado na minha frente pelo gato de casa. Lá em Caruaru, isso. Foi triste.

Ou quando esse mesmo gato - esse gato era impossível - brincou por horas com um sapo, coitado, até que eu visse e levasse o anfíbio pra fora. Não sem antes, culpa minha, quase arrancar uma de suas patas. Ou pernas? Não sei exatamente o nome dos membros saltadores dos sapos. Sei que quando libertei o coitado, todo mazelado, ele não deve ter durado nem cinco minutos no brejo da frente. Eu sim, eu sei, a natureza é foda e não dá colher de chá pra nenhum ser por aí afora. Colher e chá são invenções da cultura.

Assim como o budismo - "light" ou com gordura -, assim como o judaísmo do Pondé, assim como sua epistemologia profunda, assim como o cachimbo que ele pita e a couve orgânica que eu como. Que eu nem como, mas dava uma boa imagem complementar.

Por ser cultura, e não natureza, é que nós budistas tendemos a não matar intencionalmente outros seres. Matamos uma caralhada, é fato, aos baldes, na colheita dos grãos por ceifadeiras que vão arrasando plantações inteiras. Sabemos disso, das mortes dos insetos, pequenos mamíferos, anfíbios e répteis. Aves talvez não, embora eu tenha visto um beija-flor esmagado pelas rodas de um carro, dia desses.

Sabemos disso, porque nossa cultura e pensamento são também autorreflexivos. É fácil compreender as próprias limitações quando se está bem situado nelas. E nós estamos. Bem situados, enraizadíssimos. Tudo o que somos são limitações.

A questão que se coloca é: e então? Sabendo disso, sabendo que a natureza da natureza é o assassinato a sangue frio - mentira, não é, mas fiquemos com essa imagem - o que nós enquanto cultura vamos fazer com isso? Assassinar a sangue frio? Friboi? Expor com orgulho pedaços arrancados de outros seres vivos entre um bloco e outro da novela? Entre uma trepada selvagem encenada e um quiprocó homofóbico com o torto intuito de esclarecer a população contra a homofobia? Ou quaisquer dessas pautas justas que as novelas tentam e costumam transmitir da forma mais errada possível...

Nós somos animas, somos natureza, nossa essência é descer o cacete no adversário e dominar o território. Mas enquanto eu escrevia toda essa oração, minha essência não era só natureza desregrada. Era, também, natureza equilibrada. Apta a lidar com símbolos, linguagem, consciência. Compaixão, como diriam os mestres budistas - ou qualquer budista com o mínimo de coerência.

E a compaixão nos leva de volta às baratas. Nos traz. Porque dizia uma mestra, num retiro em que estive há pouco tempo, sobre um templo cheio de baratas. Ela disse, caro Pondé, meu amigo: "É claro que não podemos ter baratas no templo. Isso demonstraria descuido, desrespeito, desleixo com o lugar. Falta de diligência" - diligência, Pondé, é uma das virtudes transcendentes do budismo, bem como a compaixão. E a mestra continuava: "Surgindo uma barata, fazemos o possível para levá-la pra fora, sem ferir, sem matar. E voltamos a atenção à diligência, à limpeza do templo, à viabilidade do espaço que ficou faltando."

É preciso cuidado com o mundo, atenção para com as coisas e os fluxos dinâmicos que as relacionam - esgoto mal cuidado, comida apodrecida, cidades esquizofrênicas tumultuadas sem saída de ar, de água, de vida: isso atrai baratas. Isso atrai velhice doente, doença e morte civilizada. E morte civilizada é morte esclerosada, é a negação culturalmente construída de uma realidade dada. Para os budistas - nós, no caso, eu - a morte, a impermanência está aí. Podemos compreendê-la e a integrar à vida, porque ambas são integração, ou podemos tentar, com sarcasmo e desinformação, desinformar nossos irmãos humanos e nos iludir que ludibriamos a morte. A tristeza. Mas não ludibriamos, e quanto mais contra ela, mais ela está conosco.

Mas digo tudo isso, divago tanto nisso porque agora há pouco entrou uma barata em casa, no quarto de minha irmã. Que não é budista e gritou como uma desesperada. "Rápido, antes que eu mate!". E fui. Com uma saudação budista - ridículo eu, né? Ateu e laico fazendo essas coisas, saudação budista de compaixão por uma barata - com uma saudação levei meus chinelos para recolher gregorsansa. Com meus chinelos, claro, porque eu sou budista mas conheço a teoria dos germes.

E a barata - veja você! - virou de ponta cabeça, de patas pro ar. Como se estivesse morta, mas não estava - por um momento, admito, fiquei preocupado por tê-la matado. Não estava morta e assim que pedi "vem", com meu chinelo perto dela, ela veio. Subiu na borracha, teve a decência de se manter na sola das havaianas e ficou ali, quieta e comportada até que eu a levasse para a janela. Janela afora. E para o mundo.

Porque há culturas e tradições que simplesmente veem o mundo como inimigo e lutam para o controlar. Porque há culturas e tradições que, negando a natureza com tal obtusidade, se separam dela e se arrogam um sarcasmo mal disposto. E há outras. Algumas das quais, evoé, saravá, axé, gasshô, faço parte. Graças a Deus.

Em tempo, também pensamos sobre a dor e sofrimento das alfaces. Não somos insensíveis. Nem desrespeitosos.

(Para quem se interessar, eis o link do texto que deu origem a essa minha reflexão: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/09/1342503-a-etica-das-baratas.shtml)

2 comentários:

  1. Sensacional! Gratidão por seu contraponto amoroso e lúcido!

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    1. Agradeço a atenção e o comentário, Janine. Que este texto possa ser um caminho de interpretação mais suave nesses assuntos delicados.

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