quarta-feira, 11 de setembro de 2013

microcrítica literária: júlia de carvalho hansen & fado blues

Conheci Júlia quando conheci Lisboa, mudando eu pra lá e ela, acho, recém-mudada. Ou quase. Ou quase nada. Lembro da história das histórias de portugueses, de seus lentos desenrolares, arrastares, que ela me apresentava - a mim, recenzíssimo-chegado. Gabriela Llansol, Natália Correia, possivelmente Sophia de Mello Breyner Andresen, falava Júlia enquanto eu olhava a cidade lá embaixo, do alto do miradouro da Graça, perto de casa.

E digo isso porque por muito tempo, uns meses, seu alforria blues ou Poemas do Destino do Mar ficou perdido à deriva entre minhas coisas, carta de socorro sufoco e desabafo carregado pelas vagas de minhas malas, livro-mensagem engarrafado. "Abril de 2013", diz a última página, "Ano 457 da deglutição do bispo Sardinha". E só agora, passados meses e voltado eu ao Brasil, termino de ler o pedido enquanto Júlia caminha, ainda, na ilha de Dom Sebastião. Que é uma península. Mas mensagem jogada ao mar de uma península não tem o mesmo efeito.

A imagem do cavalo, recorrente mas sempre tênue, "pássaro selado e cego" (IX), percorre o livro enquanto percorremos o livro enquanto Júlia percorre, ao que parece, o livro. E o país antigo, aberto como um livro mas grafado velhamente em caracteres barrocos em escrita medieval. Um país aberto de difícil leitura, de lida não fluida, mas lá, escrita, língua de Camões e terra também.

(Foi essa uma das coisas na primeira conversa com Júlia: o quão diferentes eram nossas formas, brasileira e portuguesa, de ver o mundo e de se [nos] relacionar[mos] com. Flagrante exemplo: a dicotomia quase abissal entre "perceber" e "entender", que para nós aqui são dois verbos distintos e para eles, não exatamente. Perceber é entender, mas é um perceber de longe, como quem nota a passagem. Entender, mesmo, "compreender", é mais inclusivo, mais antropofágico, nosso entendimento tem esse caráter pouco nobre e muito devorador, esfomeado. Entendemos, perceba, compreendemos. E comemos o entendido.)



"Não sei o que o Sr. Fernando Pessoa consideraria ao saber que nenhum brasileiro ao ouvir 'o brasileiro' pensaria em algo além do povo ou de um indivíduo, e que nunca (a não ser a viver em Portugal), nunca pensaria que 'o brasileiro' pode se referir ao idioma falado no Brasil", diz um poema da parte alforria blues, parte que tem "títulos com palavras, e não números romanos". Este, por exemplo, chama "Estou bem aqui". Com todas as acepções que isso possa.

Este livro, parido com a ajuda das Edições Chão da Feira (outro empreendimentaço que fica pra outro espaço), de Carolina Fenati (um abraço), apresenta um diálogo constante entre chão e pé, por mais que o cavalo recorrente corra, como mencionei bem vagamente, servindo de motivo e símbolo. Por mais que as patas e cascos carreguem nas costas o lembrete: é vida. Vida é vida. Espaço novo terra nova velho mundo, vida estranha e incompreendida. Por um tempo, até que muda.

"Deixar pousar
o torvelinho nas mãos
que faça seu ninho
sem quebrar a joia
que te dá o mesmo que te tira." (VI)

Tem um amor, também, apresentado. Um que se vai desdobrando como se folha fosse, ao vento, que é cavalo, que é tempo, que é presente. Júlia parece conversar com as coisas enquanto acontecem agora, mesmo que carregue uma nota de passado, de lembrança, até nostalgia e apreensão. Ou não, mas sim, porque ela diz

"Passo a manhã calculando a provável altura de um tsunami
que viesse por debaixo do morro, me encontrasse sentada
nesta porta de varanda sobre o Tejo.
Não sei, mas já me aconteceu outra vez." (o mesmo poema IX)

Relato de experiência de divisão, entre visões e imagens, algum ritmo e muito logos delirante. Experiência de escrita e leitura complementar, como o espaço de complemento que vem depois de endereço. Ou, em Portugal, morada.

O poema XVIII diz, numa estrofe, um pedaço que li primeiro estampado numa parede do ateliê/estúdio/incubadora de Júlia, no dia do lançamento. Ao mar. Cavalo. Um pedaço de poema que eletriza e sumariamente explode a existência. Fazendo-a se adaptar, apenas porque sim, porque esse é o único jeito, a despeito do "puído da vida" (X). O único jeito de viver. A estrofe rascunho na parede, que está no livro, encerra isto, esta microcrítica. Reverbera.

"O raio abre
o tronco em dois.
Da metade árvore
nasce um deus
de patas firmes.
Doce cavalo, peço
com a tua língua impura
por onde passar
tece e cicatriza
a folhagem, tremor"






Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2013

"Os livros são vendidos através do e-mail da editora: livros@chaodafeira.com

Podem também ser encontrados na Livraria Quixote, de Belo Horizonte, na Intermeios Cultural, de São Paulo, na Gato Vadio, do Porto, e na Letra Livre, no Paralelo W, em Lisboa]

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